Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Daniel Chagas: 'A ditadura atingiu mais pessoas do que nossa memória pode lembrar'

Daniel Chagas. ator, diretor teatral, tarólogo e escritor | Foto: Divulgação

Há uma semana, um filme de CEP paranaense chamado "Entrelinhas" atingiu o circuito brasileiro - em cheio - com um novo (e necessário) olhar sobre os anos de chumbo, revisitando o governo de farda do início da década de 1970 sob um novo prisma territorial, vitaminado por atuações de peso. A interpretação do carioca Daniel Chagas é um dos eixos centrais de excelência do drama histórico de tons políticos dirigido por Gusto Pasko, que arrebatou elogios ao mostrar os efeitos nefastos do regime militar no governo (e na sociedade civil) do Paraná.

A saga de uma jovem estudante (Ana Beatriz Fortes, interpretada por Gabriela Freire) que é presa e torturada, em busca de respostas (esperadas), pelas Forças Armadas, encontra um signo de intolerância na figura do Major Borges, interpretado por Chagas.

Com cerca de 30 peças teatrais num currículo salpicado de novelas e filmes, o ator hoje integra as companhias Cia da Ideia e a Definitiva Cia. de Teatro. Tarólogo respeitado (e concorrido) por seu dedicado estudo da espiritualidade, Chagas também é escritor e professor da Casa das Artes de Laranjeiras (CAL). Na entrevista a seguir, ele explica ao Correio da Manhã como se deu a construção da figura de Borges, sintetizando o espírito de um tempo de repressão.

Como foi o processo de criação com o cineasta Guto Pasko para a criação de uma figura tão cheia de imposições quanto o major?

Daniel Chagas - Guto é um diretor e roteirista muito consciente do que quer e de como ele enxerga cada personagem. Quando fui escalado para viver o Major Borges, ele já sabia o que eu poderia oferecer como ator e conduziu as indicações com precisão para que chegássemos neste ponto. O nosso trabalho conjunto foi para desenvolver as nuances do Borges, de encontrar os espaços de humanidade numa figura que precisava alcançar camadas subjetivas para além da "maldade pura e simples". Conversamos muito sobre isso. Não queríamos deixar o Borges chapado como uma espécie de vilão maniqueísta. Guto me contou que, num dos primeiros tratamentos do roteiro, a família do Major integrava o filme e era possível ver ali um homem carinhoso, um pai cuidadoso. Naturalmente estes personagens precisaram sair do roteiro para que a narrativa focasse nos acontecimentos da prisão e do tormento vividos pela personagem central do filme, mas mantivemos o pano de fundo. Há, nas entrelinhas, uma projeção associativa da filha do Major na Ana Beatriz, a exemplo das cenas em que ambos se olham nos automóveis. É uma camada sutil, mas que foi essencial para a construção da empatia que se vai desenvolvendo no filme, e culmina na cena final. É imprescindível citar o trabalho desenvolvido nos ensaios com a preparadora Jaciara Rocha e com meus colegas de cena; a vida de um personagem se faz no encontro e na interação com os outros e tive a honra de contracenar com atrizes e atores imensamente generosos que me potencializaram dentro e fora de cena: Gabi, Leandro, Eduardo, Renet, Patricia e Mauro. Que honra!

De que maneira seu personagem desenha o papel armado do estado durante a ditadura e o que o filme trouxe de mais surpreendente em relação ao lugar do Paraná na cronologia dos anos de chumbo?

É importante entendermos o contexto histórico e parte da estrutura da polícia política no Brasil da época. O golpe de 1964 fez com que as DOPS (Delegacias de Ordem Política e Social), que antes eram relativamente autônomas, fossem reestruturadas e subordinadas ao Serviço Nacional de Informações (SNI). Nesse novo contexto, as DOPS passaram a desempenhar um papel central na repressão política. O Major Borges é o militar destacado para coordenar as ações desta DOPS que investiga uma operação clandestina de armas pela VAR-Palmares. A tríplice fronteira no Paraná (Brasil-Argentina-Paraguai) era de grande importância para o regime, sendo que o controle de fronteiras era uma ação prioritária. Daí a relevância da vigilância desta região, pois os movimentos contra o regime utilizavam também essa fronteira para a transação de suprimentos e informações. Conhecer fatos ocorridos no Paraná, como os retratados no filme, com uma estudante que permaneceu quase anônima até hoje (a não ser pelo duro depoimento de Ana Beatriz Fortes na Comissão da Verdade), revela que a ditadura militar foi muito mais extensa e atingiu muito mais pessoas do que nossa memória histórica limitada consegue lembrar. Há uma recorrência de se retratar a repressão como algo restrito às capitais do Rio e de São Paulo ou a lugares específicos, como o Araguaia, mas, na realidade, todo o país estava sob a vigilância e ameaça de um sistema repressivo e totalitário.

Você também é um escritor. De que forma a literatura abre novos horizontes na sua forma de lidar com o texto teatral e com roteiros?

Todas as formas de arte são caminhos de conexão com a arte cênica. Como ator, eu procuro me alimentar de diversas referências no momento de criação e desenvolvimento de um personagem. A literatura não foge a esse processo e a minha própria escrita faz parte do caminho. Um personagem tem sempre mais vivências e mais camadas do que as expostas no roteiro, então, para alguns personagens, eu me permito escrever os mais variados conteúdos. Valem desde pensamentos ou cartas do próprio personagem, até crônicas ou contos sobre ele. Muito é produzido e depois há uma síntese, uma "limpeza", para que o material essencial fique no corpo, nos afetos e nas ações do personagem. Na prosa, eu tenho um livro publicado, que se chama "Entre", mas infelizmente não consegui uma segunda edição com ele. Tenho desejo de publicar outros e existem até dois projetos iniciados, mas estacionados nas minhas gavetas virtuais.

Que novos projetos você tem pela frente e o quanto eles também exploram a sua veia de diretor e autor?

Neste momento estou em turnê com o espetáculo de dança-teatro "O Corpo Que Eu Habito", com a Cia da Ideia. Estamos indo para Belém, São Luiz, Rio de Janeiro e Vitória. Nesse projeto, eu assino como dramaturgo um processo colaborativo de pesquisa de textos autorais de cada intérprete-bailarino. Acabei de ser aprovado para uma participação bem bacana em uma série norte-americana de um streaming, mas ainda não posso revelar muita coisa. Em novembro, estreio com a Definitiva Cia. de Teatro o espetáculo "Bendegó", aqui no Rio de Janeiro. Estou trabalhando como preparador de elenco no solo "Selva-Solidão", do diretor Jefferson Almeida, com o ator Vinicuis Teixeira. Sigo com meu trabalho como professor de interpretação para audiovisual na CAL, a Casa das Artes de Laranjeiras. Para o ano que vem, eu planejo estrear, ainda no primeiro semestre, meu primeiro solo teatral como ator.