Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Patrícia Niedermeier: 'Nós artistas somos duplamenteabismo-espelho'

| Foto: Divulgação

 

Imparável no teatro e nas telas, como atriz e também como cineasta, Patrícia Niedermeier é uma artesã de parcerias. Brilhou na criação coletiva com seu companheiro, o diretor Cavi Borges, em vários filmes, como "Reviver" (hoje na grade da plataforma Amazon Prime), e tem dois longas-metragens inéditos, feitos em duo com a coreógrafa Regina Miranda, para lançar: "Ensaios Sobre Yves" e "Mulheres Em Auscwitz - Escritas De Resistencia". Há pouco, o Estação NET Rio exibiu trocas entre ela e o artista visual e realizador Neville D'Almeida.

Essa sua vulcânica produtividade atrás das câmeras, com narrativas ensaísticas sempre calcadas na vertigem do movimento (e da vivência) instigou a curadoria da mostra Faróis do Cinema, hoje em cartaz na Caixa Cultural, a convidá-la para integrar uma retrospectiva de realizadoras do mais alto quilate estético e das mais variadas gerações. O projeto - inspirado no DocBlog, do crítico Carlos Alberto Mattos - contempla vozes autorais de respeito, como Helena Ignez, Theresa Jessouroum, Laís Bodanzky, Luciana Bezerra, Susanna Lira, Ana Maria Magalhães, Marina Meliande, Beth Formaggini, Clarissa Campolina, Aída Marques e Tetê Moraes.

Numa troca com a curadora Mariana Bezerra Cavalcanti, cada uma delas expressa suas inquietações com um filme que dirigiu e com uma referência a artistas que as inspiram, os tais faróis.

Patrícia entra em campo no evento no dia 6 de setembro, às 15h30, com "Salto no Vazio" (2017), rodado com Cavi, e adotou o cult "As Praias de Agnès" (2008), dirigido por um ícone feminista, a belga Agnès Varda (1928-2019), como um dos estandartes audiovisuais que iluminam seu processo de criação. No mesmo dia, às 18h40, ela mobiliza a Caixa num debate com a já citada documentarista Tetê Moraes. Na entrevista a seguir, Patrícia fala de suas pesquisas e de suas descobertas na realização.

A nova edição da mostra Faróis do Cinema revisa várias estéticas femininas essenciais para iluminar a forma de se fazer cinema no Brasil e você faz parte delas, com uma obra híbrida de ensaio, ficção, .doc e dança. Como é se ver ao lado de um time de mulheres cineastas tão plural e tão eclético?

Patrícia Niedermeier: A Faróis do Cinema é um projeto literalmente iluminado. Foi muito enriquecedor mergulhar no conceito de filme farol, no qual pude refletir sobre obras e cineastas que me inspiraram na minha caminhada no cinema. Estou feliz de poder dialogar sobre cinema e criação e ver de perto a obra dessas cineastas fascinantes e transgressoras. Poder dialogar sobre linguagem, escolhas e motivações com elas será uma grande experiência. Esse encontro vai iluminar minha viagem cinematográfica como é a função dos faróis. Será muito importante também sentir o corpo coletivo da obra de cineastas mulheres contemporâneas e perceber seus questionamentos e inquietações. Apesar das notáveis realizações, elas permanecem pouco conhecidas ou estudadas, numa indicação de que as forças sociais e econômicas mobilizadas contra elas continuam a existir e também se estendem ao campo dos estudos cinematográficos. É fundamental a justa inclusão das mulheres à história do cinema.

Como é que o teu farol na mostra Faróis, a cineasta Agnès Varda, mais te ilumina?

Descobrir algo sobre si mesma, sobre o cinema. Esse é o ponto de partida de "As Praias de Agnès", uma viagem autobiográfica que transita entre o documentário e ficção me inspirando profundamente. "Se você abrir uma pessoa, irá achar paisagens. Se me abrir, irá achar praias", diz o filme. A possibilidade e a beleza de refazer o percurso da vida e o processo criativo com fotografias, cenas de filmes, entrevistas, lugares, propostas encenadas, criando um poderoso diálogo com as artes visuais. Eu amo a forma autoral e livre com que Varda mistura todos esses recursos.

Qual tem sido o lugar de troca com Regina Miranda? Que filmes vocês têm juntas?

Regina Miranda é uma artista que sempre me inspira e me desafia. Meu encontro com ela foi transformador na minha formação e posso dizer que ela é minha mestra em muitos sentidos. São muitos começos e recomeços, performances e espetáculos em muitos lugares no mundo, e estamos juntas há mais de 20 anos em crescente colaboração e entusiasmo. Em 2021, ela me deu o livro "Imagens Apesar De Tudo", de George Didi-Huberman, e, depois de um tempo de estudo e pesquisa, Regina chegou ao roteiro de "Mulheres Em Auschwitz - Escritas de Resistência". É um roteiro brilhante que ela escreveu sobre as mulheres escritoras do Holocausto. Em tempos de regimes autoritários fascistas, achamos importante falar de direitos humanos e dar voz a essas magnificas escritoras do Holocausto. Só tive coragem de mergulhar nesse universo por ser uma criação com ela que sempre me faz ir mais longe. O filme vai estrear em outubro.

O quanto o ofício de dirigir oxigena a sua forma de atuar e de usar a dança como um de seus elementos criadores?

Meus trabalhos são muito autorais. Gosto das fronteiras fluídas. Sempre trabalhei teatro, dança, performance e tudo misturado. No cinema, não poderia ser diferente. Uso todos esses elementos que fazem parte da minha identidade como artista. O ofício de dirigir me dá mais liberdade de embaralhar tudo. No meu processo de criação, todas as perguntas estão no corpo. Todas as respostas estão no corpo. O corpo, seu diálogo e atravessamento com o espaço, com os outros corpos que se deixam afetar. Levo para meus trabalhos, minhas ideias, minhas alegrias, meus abismos, meu horror e minha luz. O grande poeta e dramaturgo alemão Georg Büchner escreveu numa cena de sua peça "Woyzeck": "Cada ser humano é um abismo e a gente tem vertigens quando se debruça sobre um deles". Acho que nós artistas somos duplamente esse abismo-espelho: como seres humanos e como artistas. Minha missão, principalmente quando estou dirigindo, é provocar vertigem e rever o abismo dentro de cada espectador.

Quais são seus próximos projetos nas telas?

Estou trabalhando num longa e videoartes inspirados nos escritos e filmes da cineasta experimental Maya Deren. Falar em Maya Deren é falar de um corpo atravessado por intensidades em estado pulsante. Maya é uma mulher pioneira no cinema experimental, que escrevia e filmava com o rigor dos rituais. Ela é uma paixão e vertigem. Arte para Maya é um estado de completa devoção. Estou "devota" à criação do filme que me levou a lugares desconhecidos e a me apaixonar por cavalos. Maya acreditava no cinema como uma forma de arte capaz de proporcionar uma experiência de tempo e espaço. A edição como uma ferramenta muito importante na linguagem cinematográfica. Tenho mergulhado bastante no processo de edição para descobrir o filme.