Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

CRÍTICA FILME- ESTÔMAGO II - O PODEROSO CHEF: Geografia(s) da fome

Nicola Siri e João Miguel saíram premiados do Festival de Gramado por suas atuações como Don Caroglio e Raimundo Nonato nesta celebrada sequência da comédia sombria de 2007 | Foto: Divulgação

Sêneca (4 a.C. - 65 d. C.), o filósofo que dizia "viver significa lutar", instigava seus ouvintes à arte da sobriedade ao sugerir: "Nada é tão lamentável e nocivo como antecipar desgraças". Essa sugestão do pensador parece ser o lema de Caroglio, um Al Capone de falar sedutor, e paladar requintado que estrela o filme "Estômago II - O Poderoso Chef".

Num trânsito entre sua Itália natal e o Brasil, o contraventor acabou preso por aqui, passando uma temporada por trás das grades que, oposta à vontade da Justiça, serve com perfeição às suas artimanhas a fim de se estabelecer com destaque na senda do crime.

Diante do conflito iminente de controle, no comando do conjunto de celas onde é alocado, por conta de uma rusga com outros internos, ele destila temperança ao dizer apenas "Deixa comigo", quando lhe exigem uma tomada de posição diante dos adversários. Cada passo dado - assim como cada prato sorvido - pelo criminoso de sapatos finos e prosódia mansa parece um movimento de enxadrista, um deslizar de peças num tabuleiro de ilegalidade(s) e disputas territoriais que faz da saga de ascensão desse personagem uma aula de sociologia.

Dirigida com um ritmo preciso por Marcos Jorge, a continuação da comédia sombria de 2007 chega às salas de exibição do país calçada numa série de vitórias na competição oficial do 52º Festival de Gramado, realizado em agosto. Caroglio, com todo o seu ardil, seduziu o júri da maratona cinéfila gaúcha e garantiu ao genovês Nicola Siri o troféu Kikito de Melhor Ator por seu magistral desempenho. Só a sequência de abertura, no qual ele faz uma expositiva análise dos sabores da vida, seguida por um gesto mortífero, já basta para ilustrar a maturidade de seu intérprete, evocando o Robert De Niro de "Os Intocáveis" (1987).

O Kikito de Siri foi dividido com seu coprotagonista, João Miguel, hilário (uma vez mais) na retomada de seu personagem mais inesquecível, o cozinheiro e presidiário Raimundo Nonato, o Alecrim. Seu regresso contagiou Gramado, onde sua nova aventura foi eleita o melhor filme pelo júri popular da cidade. Essa consagração amplia a visibilidade dessa produção de CEP paranaense, que chega como uma lufada de picardia na atual cena brasileira de títulos em circuito, inflamada de pautas políticas (mais do que bem-vindas) e um tanto carente de ironia.

Migrante do Nordeste, confinado há cerca de 15 anos num presídio de segurança moderada, Nonato ainda equilibra subserviência e potência em sua maneira de lidar com os líderes que o cercam, os oficiais (como o diretor da instituição e os agentes carcerários) e os ilegais, como é o caso de Etecétera. Esse é nome do bandidão (encarnado com graça por Paulo Miklos) que se tornou o "xerife" da prisão ao fim do "Estômago" original.

Truculento, sem modos, ele pede a seu mestre-cuca de plantão para cozinhar um banquete de boas-vindas para Caroglio. Espera receber o europeu - e sua claque de comparsas italianos - com sustância, não apenas por uma medida de "boa vizinhança", mas para deixar evidente que quem manda é ele. Etecétera só não contava com a fome de Caroglio. Não a fome por rigatoni com berinjela, mas, sim, seu apetite irrefreável por poder.

É sobre esse apetite (e as formas de saciá-lo) que fala o roteiro escrito por Bernardo Rennó, Lusa Silvestre e o próprio Marcos Jorge. É um roteiro que dialoga com os thrillers do mestre napolitano Francesco Rosi (1922-2015), sobretudo "Cadáveres Ilustres" (1976).

Esse é um clássico que voltará à tela grande este mês na retrospectiva "Itália Violenta", organizada pelo 72° Festival de San Sebastián (20 a 28 de setembro), debruçando-se sobre a tradução do poliziesco, a dramaturgia criminal (de tintas sociais) desenvolvida pelo Velho Mundo a partir do fim da II Guerra. É com ela que a estética de Marcos Jorge conversa nessa parte dois de "Estômago", aproximando o cinema brasileiro de um filão - as narrativas mafiosas - com o qual essa pátria de milícias pouco conversa nas telas.

A ascensão de Caroglio no longa - que é narrada num processo de montagem elegante, de idas e vindas no tempo - ajuda o Brasil a compreender melhor o saldo miliciano que assaltou até o Palácio do Planalto. Há um espírito crítico cáustico na escrita de Rennó, Lusa e Jorge (coroada também com um Kikito) que expõe as dinâmicas de opressão efetuadas por Caroglio numa fricção com sua famiglia (ou seja, sua facção na Itália), diante da chegada de uma possível nova liderança, encarnada por Valentina Galante (Violante Placido, em delicada atuação). Se em solo europeu, Valentina é ameaçada por um jugo machista, em terras verde e amarelas, a ameaça ao bem-estar do submundo está na bestialidade de Etcétera.

O processo digestivo da dramaturgia de "Estômago II: O Poderoso Chef" - colorida de modo dionisíaco pela fotografia de Kauê Zilli e Maura Morales Bergmann - é guiado pela forma como Caroglio rumina os percalços por que passa e tempera seus planos de revanche. Ex-cozinheiro num restaurante de comida brasileira em sua pátria natal, ele sabe a iguaria certa para deixar barrigas cheias e para causar indigestão. Na trattoria da delinquência, ele sabe o valor culinário (e afetivo) de Nonato, a quem chama de Rosmarino, na tradução literal da erva que dá um gostinho bom a seus pratos de ouriço e macarrão. Nonato, com seu jeitão de João Grilo, de anti-herói pícaro, é o molho que tempera a salada de golpes de um vilão singular. Um vilão que consagra o binômio de talento e carisma de Nicola Siri, no apogeu de seu ferramental cênico.