Habemus Ken Loach
Um ano e três meses após sua passagem por Cannes, 'O Último Pub', que pode ser o filme de despedida do marxista inglês, vai enfim estrear no Brasil
Por Rodrigo Fonseca
Especial para o Correio da Manhã
Lá se vão um ano e três meses, contadinhos no calendário, desde que "The Old Oak" fez sua estreia mundial, na disputa pela Palma de Ouro de Cannes. Desde então, nada de tela para o filme no Brasil, onde seu realizador, Ken Loach, é um mito. Ele chegou a ser convidado a participar de um Zoom com o documentarista Silvio Tendler na edição online do Festival de Brasília, em 2020. Agora, contudo, há uma data para a estreia do que periga ser o derradeiro filme do artista no circuito nacional: 8 de agosto. Seu título brasileiro é "O Último Pub".
"O que a gente tenta fazer é contar as histórias das pessoas da classe trabalhadora. Nessas vidas, as contradições do capitalismo se tornam claras, revelando tanto as contradições do abuso da dignidade humana quanto a capacidade que as pessoas têm para sobreviver. O problema é o sistema", disse Loach no concorrido zoom com o Festival de Brasília, enquanto seu longa anterior, "Você Não Estava Aqui" (2019), corria mundo.
Seu novo filme carrega muito de seu parceiro habitual, o roteirista Paul Laverty. Formado em Filosofia e depois em Direito, o escocês nascido em Calcutá fez da América Latina das décadas de 1980 e 90 a arena para uma série de lutas sociais em prol de países marcados por ditaduras ou guerrilhas. Da Nicarágua, onde iniciou seu périplo, ele foi para El Salvador e, na sequência, partiu para a Guatemala. Após um longo périplo pelas veias abertas do território de colonização hispânica, ele resolveu procurar Loach, entusiasmado pela natureza marxista dos longas do diretor, a fim de lhe servir como consultor para um projeto que virou o filme "Uma Canção Para Carla" (1996), sobre a reinvenção de uma imigrante nicaraguense em Glasgow. Aquela aproximação de Laverty com o audiovisual deu frutos, uma vez que Loach nunca mais o largou. Fizeram outras 15 produções já lançadas, incluindo os dois títulos que deram a Palma de Ouro ao realizador: "Eu, Daniel Blake" (2016) e "Ventos da Liberdade" (2006). Exibido ainda no Festival de Locarno, "O Último Pub" foi coroado com a menção honrosa do Júri Ecumênico da Croisette. A marca do marxismo está em todos esses títulos.
"Temos sempre que escutar o Velho e pensar sobre o que ele nos mostrou há alguns séculos a fim de pensar as contradições materialistas como motores de um mundo de tanta exclusão. Eu só não faço um filmo sobre o que acontece com o Brasil por não ter morado nunca aí. Seria um ato desonesto da minha parte", disse Loach, em recente entrevista ao Correio da Manhã, em meio à finalização de seu novo longa, que ele promete ser o ponto final de uma obra iniciada em 1967, com "A Lágrima Secreta".
Sua trama é ambientada num vilarejo de antigos mineiros de carvão, que nunca se recuperou totalmente do esgotamento de suas jazidas. Sua comunidade, outrora próspera e orgulhosa, luta para manter seus valores vivos em meio à raiva e ao desânimo crescentes, enquanto poucos jovens permanecem no local. Um fluxo de refugiados sírios, atraídos pelas moradias baratas, está trazendo sangue novo para o vilarejo. Mas não está claro se a comunidade os aceitará, e o futuro do último pub do vilarejo, The Old Oak, é incerto. É Loach em estado puro, com sua sociologia poética.
Vale lembrar que a produtora de Loach, a Sixteen Films, é um tesouro vivo em imagens de arquivo, diante de tudo o que o realizador registrou em seis décadas de audiovisual, uma vez que estreou na TV em 1964. Já nos primeiros filmes - "Up The Junction" (1965), "Kes" (1969), "The Rank and File" (1971) e "The Price of Coal" (1972) -, Loach desenhou o caminho que vem seguindo, com enorme sucesso. "Encaro sempre o território como personagem. A cidade são coprotagonistas nos meus filmes, sempre", defende Loach nos vídeos de seu canal no YouTube, que pode ser acessado na URL https://www.youtube.com/user/KenLoachFilms. "Metrópoles ou vilas interagem todo o tempo com os personagens, modificando como eles se comportam, desejam, amam".
Laverty é parte essencial da força política da estética de Loach, com seu fraseado curto, de reflexões alarmistas sobre a engenharia da exclusão no Velho Mundo. O "Old Oak" do título é o nome de um bar numa cidade inglesa outrora sustentada pela exploração de suas minas - hoje esgotadas. A falência generalizada do local movimenta as vendas de cerveja e de uísque de TJ Bannatyne, o dono daquele boteco, vivido com esplendor por Dave Turner. A escrita fina de Laverty oferece a Turner munição para destilar dor no momento em que seu personagem passa a acolher (e servir) refugiados sírios que se aboletam, dia a dia, naquele lugar assombrado pela xenofobia europeia.
Agitado por reviravoltas violentas, o roteiro de Laverty abraça a sociologia, combinando-a com o (melo)drama numa mistura perfeita, filtrada pela fotografia sóbria de Robbie Ryan.