O sopro de Costa-Gavras

Aos 91 anos, o papa do thriller político volta às telas com um filme inédito em competição no Festival de San Sebastián

Por Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

'Le Dernier Souffle' marca a volta do franco-gerego Costa-Gavras à direção abrindo um debate filosófico

Agendado de 20 a 28 de agosto no norte da Espanha, o Festival de San Sebastián incluiu em sua competição oficial, em disputa pela Concha de Ouro de 2024, um longa-metragem inédito do papa do thriller político: o franco-grego Costa-Gavras. Aos 91 anos, ele entra em concurso com "Le Dernier Souffle" ("O Último Suspiro", em tradução livre). A trama é uma espécie de diálogo filosófico, Nele, o doutor Augustin Masset (Kad Merad) e o renomado escritor Fabrice Toussaint (Denis Podalydès) discutem a vida e a morte. Na conversa, passa-se um turbilhão de encontros em que o médico é o guia e o escritor, seu passageiro. Os dois são levados a confrontar seus próprios medos e ansiedades, num balé poético, em que cada paciente gera um mar de emoções, risos e lágrimas.

O projeto nasceu em meio a processo de criação atípico para Costa-Gavras, no qual ele passou cerca de dois anos envolvido na escrita de uma narrativa serializada para a TV (ou streaming). Em meio a esse exercício, que não saiu do papel, ele virou assunto de uma série documental em dez episódios: "Le siècle de Costa-Gavras". A direção é de Yannick Kergoat e o roteiro, de Edwy Plenel. Em maio, o Festival de Cannes exibiu um dos capítulos, chamado "La Vérité Est Révolutionnaire - L'Aveau". São 52 minutos dedicados a um dos filmes mais aclamados do cineasta, "A Confissão", lançado em abril de 1970.

"Com o descrédito das lutas de classes, a religião mais poderosa que existe neste mundo se chama Dinheiro, uma força amoral que não guarda respeito por nada", disse o cineasta ao Correio da Manhã, numa recente entrevista em Paris.

Respeitado desde o sucesso mundial de "Z" (1969), o nonagenário realizador ganhou, faz pouco, no Festival de Locarno, na Suíça, um troféu honorário pelo conjunto de sua carreira como cineasta. Dois dos filmes mais antigos de sua obra hoje correm pela Europa, em cópias novas: "Tropa de Choque: Um Homem a Mais" (1967) e "Crime no Carro Dormitório" (1965). São títulos de uma fase anterior à sua consagração. "Dialogo com o suspense de modo a ter um ponto de conexão com as plateias às quais vou apresentar minhas teses. Plateias que, muitas vezes, estranharam ver um camarada que discutia o papel da esquerda e da direita, como eu sempre faço", disse o cineasta.

No Brasil, o longa-metragem mais recente do diretor, o imperdível "Jogo do Poder", está disponível na plataforma Amazon Prime. Ao ser homenageado pelo conjunto de sua obra no Festival de Veneza, há cinco anos, quando pôs esse trabalho, batizado originalmente de "Adults in The Room", na roda pela primeira vez, Konstantinos Gavras (seu nome de berço) incluiu o Brasil num debate acerca da economia da exclusão. Na ocasião, ele definiu o governo de nosso ex-presidente (anterior a Lula) com uma analogia irônica: "Bolsonaro é Charles Chaplin".

Na ocasião, o diretor explicou: "Um roteiro não filmado é como um amor que acabou mal. E eu tenho vário amores quer não terminaram bem, nessa lógica da escrita de filmes. Contei as histórias que queria, embora eu tenha vontade de contar outras", disse Costa-Gavras. "Cinema não é como um jogo de futebol, em que as regras estão estabelecidas, cronometradas e arbitradas. Cinema é um espetáculo vivo, que se pensa".

Eletrizante, como tudo o que ele fez e faz, "Jogo do Poder" é um drama de tintas cômicas sobre a crise da Grécia nos anos 2010. "Vivo na França há anos e já filmei no mundo inteiro, mas, se você nasce grego, todo o passivo histórico de nossa pátria vem com a gente, e a tragédia é parte desse patrimônio que nos define. A minha contribuição a uma situação de tensão como essa que enfrentamos em nosso país, com a falência econômico, é abrir reflexões que transcendam fatos. Fato é para o jornalismo. O cinema parte do fato para gerar transcendências", disse o realizador que partiu do livro homônimo de Yanis Varoufakis, ex-ministro das Finanças da Grécia, sobre a falência de sua nação no fim da primeira década do século.

Christos Loulis vive o próprio Varoufakis no longa-metragem, que se concentra em tramitações políticas e judiciais de 2015 para travar a bancarrota das finanças gregas. Valeria Golino e Ulrich Tukur completam o elenco da produção, centrada em tramitações políticas e judiciais de 2015 para travar a bancarrota das finanças gregas. "Estou há muito tempo atento ao que se passa na Grécia, em suas várias tragédias. Comecei essa história em 2007, quando percebi que a Grécia ia quebrar e que a esquerda ia se colocar mais à direita diante do quadro econômico do país. Espero que a nova presente da Comissão Europeia ajuste essa situação", disse o cineasta, que relembrou fatos marcantes de sua vida nas telas na autobiografia "Va où il est impossible d'aller", lançado em 2018, em meio ao Festival de Cannes.

Egresso de uma vila do Peloponesso chamada Loutra-Iraias, Costa-Gavras, ganhador da Palma de Ouro de 1982, com "Missing", seguiu atacando o lado mais conservador da política sul-americana. Segundo ele, "incongruências do contemporâneo nos seguem por todos os lados". Em 2019, ele ainda ganhou tributos em San Sebastián por sua bem-sucedida carreira. "Houve um tempo em que cinema de autor era um cinema de resistência. Mas vimos com o tempo que qualquer filme capaz de espelhar a inquietude de seus diretores é autoral. 'Star Wars' é um filme de autor, por exemplo".