CRÍTICA FILME - ESTRANHO CAMINHO: Nas brumas do 'extra-ordinário'

Por Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Um clima de mistério que não se explica norteia a busca de um cineasta pelo enigmático pai em 'Estranho Caminho'

 

Existe o suspense, terreno arado por Alfred Hitchcock, Claude Cabrol, Brian De Palma e outros titãs; existe o terror, com uma apropriação política da ideia de Mal, traduzido ou por vias da fantasia ou por vias de um realismo gore; e existe o "extra-ordinário".

Esse é o nome que se dá a um derivado do cinema fantástico no qual acontecimentos fora da norma racional não são justificáveis, sem existirem forças sobrenaturais ou operações científicas que os expliquem. É o mistério pelo mistério, numa operação de fragmentação de certezas que desafia a lógica e celebra a poesia. "Estrada Perdida" ("Lost Highway", 1997), de David Lynch, é um de seus alicerces, numa trajetória recente que ganhou muitos adeptos no Brasil. "A Febre" (2019), de Maya Da-Rin, é um de seus exemplares de maior sucesso.

O interesse brasileiro por um filão que marca vozes autorais estrangeiras de grife, como o tailandês Apichatpong Weerasethakul, é alimentado pela chegada ao circuito de "Estranho Caminho".

Catapultado para a notoriedade depois de conquistar quatro prêmios no Festival de Tribeca, em Nova Iorque, em 2023, o longa-metragem de Guto Parente é um dos mais envolventes exercícios dessa seara misteriosa. Egresso do Ceará, seu realizador ganhou notabilidade em 2010, ao fazer parte do coletivo Alumbramento, com o seminal "Estrada Para Ythaca". Há uma década, ele arrebatou a Mostra de Tiradentes com "Doce Amianto" (realizado ao lado de Uirá dos Reis) e voltou a brilhar (a partir do Festival de Roterdã, na Holanda) com "Inferninho", rodado em dupla com Pedro Diógenes, em 2018.

Em sua mais nova (e potente) expressão autoral, Guto investe de forma inteligente nos códigos (ainda em formação) dessa nova modalidade do assombro, numa narrativa de um intimismo sufocante. Suas sequências se apresentam como haicais sobre a incerteza que ornamenta uma relação alquebrada entre pai e filho. É filme de implosão, onde o belo se faz notar pelo que não é dito, pelo que não se explica. Pelo primor de sua escrita, a produção ganhou o troféu Redentor de Melhor Roteiro no Festival do Rio, no ano passado.

A vitória carioca se deu depois de sua consagração nova-iorquina. Além das láureas de Melhor Filme e Melhor Direção, Tribeca coroou a fotografia dionisíaca de Linga Acácio. É uma concepção fotográfica que se deleita na luz natural das paisagens cearenses a fim de trazer a natureza como um vetor de arejamento para uma conjugação afetiva atípica, que começa a ser esboçada entre um diretor de cinema e um aspirante a escritor. Na trama, um cineasta, David (Lucas Limeira, sempre numa composição doce, sabiamente contida), procura a ajuda do pai que há tempo não via - Geraldo, papel do sempre surpreendente Carlos Francisco, visto em "Marte Um" e "Bacurau". Foi dele o quarto troféu dado pelo supracitado evento de Nova York ao filme. Aliás, Carlos Francisco ganhou ainda o prêmio de Melhor Coadjuvante no Festival do Rio por seu desempenho.

Aclamado ainda na seção Horizontes Latinos do Festival de San Sebastián, na Espanha, em 2023, "Estranho Caminho" é uma recriação cheia de estranheza dos sofridos dias da pandemia, em 2020. David volta para casa, em Fortaleza, após um período longa em Portugal, onde vive com Teresa (Rita Cabaço), para apresentar um filme num festival que é cancelado em decorrência da covid-19. O filme experimental de (quase) terror que ele veio exibir servirá de matéria para que Guto explore não apenas a sensibilidade fraturada do rapaz, mas também a aura de indefinição (e também de uma espectral peste) no Brasil de Bolsonaro que reconstitui. A exasperação vai sendo graduada gota a gota, numa narrativa que refaz um passado bem recente à foça da direção de arte minuciosa (mas discreta) de Taís Augusto. Ela se faz notar com mais brio na casa de Geraldo, cheia de cacarecos, onde David vai bater à cata de um pouso seguro, após ficar refém do lockdown imposto pelo coronavírus.

Sua estadia na pousada onde estava hospedado acaba à força. Sem ter onde se encostar, o artista acaba procurando o pai, um sujeito taciturno, de poucos afagos, a quem vinha seguindo de longe, sem abordagens, por conta de um hiato sentimental antigo que os distanciara. Geraldo é um enigma vivo, um valor de X incalculável para uma possível relação de carinho. É um sujeito que usa uma espécie de aspirador de pó para "desinfetar" David quando este aparece no seu apartamento, de modo a evitar rastros da covid-19.

Há segredos no ritual de absoluto egocentrismo daquele homem que abre pequenas frestas para estabelecer conexão com o filho, interessando-se por entender a obra cinematográfica dele. Suas excentricidades são diversas, entre elas falar uma língua indecifrável quando acorda solapado por falta de ar e escrever um livro enigmático que ninguém pode folhear. O que existe de incerto e de indefinível nele torna o filme atraente, por dialogar com a tradição de um certo suspense de semiótica dificilmente traduzível por códigos convencionais. É algo próximo do já evocado Lynch, sobretudo em "Coração Selvagem" (Palma de Ouro de 1990). Existe um chão que nos é familiar, mas há signos que não se encaixam em leituras mais aparentes, imediatas. A fricção entre essas duas instâncias rende um filme provocador.