Paraty em tempos de cinema
Festival levou a cidade onde foi rodado 'Azyllo Muito Louco' a um passeio por estéticas autorais e pelos debates que hoje agitam o audiovisual
Celebrizada no audiovisual como cenário (e polo de produção) de filmes icônicos como "Azyllo Muito Louco" (1970), Paraty, o lar da Flip, renovou a vocação cinematográfica de suas terras e de sua gente na semana passada, ao acolher um festival capaz de unir grifes autorais e debates sobre os novos rumos da imagem em diferentes mídias. A efervescência que lá se passou se deu sob a curadoria dos irmãos Jane e Bruno Saglia. Os dois foram responsáveis pela maratona cinéfila de Vassouras, em 2023, e repetem os acertos agora numa outra paisagem, debruçados sobre o interesse em levar cineastas de diferentes gerações - e de propostas estéticas distintas - para rincões do Rio que são afastados, algumas horas, da agitação metropolitana.
Para o mercado exibidor, o evento deu holofotes a lançamentos que já, já estouram em circuito, como a dramédia "De Pai Para Filho", de Paulo Halm, que estreia nesta quinta. A noite de sábado da mostra competitiva organizada pelo Saglia ganhou tons comoventes graças a essa história de amor entre um vendedor de ferragens (Juan Paiva) e uma viúva (Miá Mello), mediados por um fantasminha camarada (vivido por um inspirado Marco Ricca).
Toda a agitação do Festival Internacional de Paraty começou na última quarta, com a projeção do curta-metragem "Esta Noite Seremos Felizes", de Diego dos Anjos. Sua narrativa cresce em tela apoiada pela química entre dois colossos, Bete Mendes e Othon Bastos, unidos numa relação outonal. Na sequência, a programação desfilou longas de realizadoras consagradas, como Lúcia Murat (em concurso com "O Mensageiro") e Susanna Lira (no páreo do evento com "Fernanda Young - Foge-me ao Controle"), e acolheu a première do thriller "Atena", de Caco Souza, com Mel Lisboa.
Em sua mirada estrangeira, os Saglia emplacaram um achado ao buscarem da Bolívia o potente "Los De Aabajo". Amparado numa montagem enervante, o longa de Alejandro Quiroga é uma espécie faroeste marxista sem tiros, com bicicletas no lugar de cavalos. Há pistoleiros, sim, mas do lado dos capitalistas, sintetizados na figura nefasta de um agente da gentrificação do campo, um cruel latifundiário vivido pelo argentino César Bordón (de "Relatos Salvajes"). O personagem dele quer oferecer uma ninharia por terras de pobres aldeões que sofrem com a falta de água. Cabe a Gregório desafia-lo. Tem bons motivos pra isso, fora a sanha heróica que o espirito denuncista do longa dá a ele. Ele tem um filho pequeno. E fará de tudo para resguardá-lo, o que garante ao longa um colorido vivo. Vale lembrar que esse sóbrio trabalho de Quiroga é coproduzido pela MyMama Entertainment, do Brasil; Río Azul, da Argentina; e Chirimoya Films da Colômbia.
Nas rodas de conversa, Jane e Bruno Saglia apostaram em tônicas ambientais e industriais, trazendo o cineasta Cavi Borges e os críticos Raphael Camacho e Francisco Carbone para um bate-papo sobre formas de fruição doméstica das narrativas fílmicas, indo da cultura das locadoras ao streaming, passando pela programação de circuitos alternativos. No quesito memória, os organizadores do festival prestaram uma homenagem ao ator José Wilker (1946-2014), morto há uma década. O tributo incluía a exibição de marcos de sua carreira, como "O Homem da Capa Preta" (1986).
O que fica como saldo do empenho dos Saglia é um esmero em construir uma ponte entre passado, presente e futuro da telona, debatendo a inclusão social e as pautas de pertença e de equidades que hoje movem o Brasil para novas e democráticas direções. A aposta em curtas de peso - como "Lagrimar", "As Marias" e o delicado "Como Chorar Sem Derreter" - atestam a diversidade da programação em múltiplas latitudes.