Petrus Cariry: 'O cinema no Ceará, em sua diversidade, adquire uma força nova'
Nas raias do "extra-ordinário" (termo que designa o mistério para além de explicações), com um pé na imaginação e outro num realismo duro e cru, os filmes de Petrus Cariry encontram poesia numa mirada sobre a solidão e o vazio existencial, debruçados sobre as paisagens do Ceará. Títulos como "A Praia do Fim do Mundo" (2021), "O Barco" (2018), "Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois" (2015) e "Mãe e Filha" (2011) encheram sua estante de troféus e deram uma grife autoral de peso ao cinema cearense. Neste fim de semana, o realizador regressa ao circuito com "Mais Pesado É O Céu", com o qual conquistou o Kikito de Melhor Direção no Festival de Gramado.
Na trama, duas almas em danação na Terra, Antônio (Matheus Nachtergaele) e Teresa (Ana Luiza Rios), pegam uma estrada em busca de reconstruir a vida. Diante de um Brasil devastado por uma crise moral e política, os dois acolhem um bebê abandonado e formam uma família improvável, sob um sol escaldante. Suas filmagens aconteceram em 2021, nos municípios de Quixadá e Nova Jaguaribara, tendo entre seus cenários o Açude Castanhão. O longa-metragem correu cerca de 20 mostras competitivas, entre o Brasil e o exterior, e conquistou láureas como o German Independence Award - Spirit of Cinema, entregue pelo 30º Oldenburg International Film Festival, na Alemanha.
Qual é a dimensão política que ronda a solidão e o esboço de amor entre Teresa (Ana Luiza Rios) e Antônio (Matheus Nachtergaele)? O quanto a solidão deles carrega os sintomas das contradições sociais do país?
Petrus Cariry: São dois seres humanos à margem das estradas e da sociedade, desterrados. Teresa busca um futuro, a partir da falta de perspectiva e da sua memória submersa pelas águas. Antônio é um desiludido, um faz-tudo em busca de migalhas, perseguindo uma vaga esperança. O encontro com Teresa reacende nele alguma coisa, algum desejo, talvez alguma esperança de constituir uma família, embora tudo conspire contra esse sonho. O filme é político nesse sentido: ao mostrar a solidão profunda e a invisibilidade em que vive uma grande parcela da sociedade brasileira. É um filme realizado no final da pandemia, na época em que a sombra devoradora do fascismo nos rondava com mais ferocidade. Essa sombra ainda nos ameaça.
Como você avalia a lógica de montagem (tão celebrada) de seus filmes em relação à estratégia de drama (ou até certo ponto) de melodrama de seu novo filme?
Tanto quanto o cuidado com os atores, a fotografia, o som e o roteiro, dedico especial atenção à montagem. Para mim, ela é de grande importância, pois é quando o filme se define, através de sua pulsação narrativa e simbólica, em suas intimidades, ritmos, surpresa, falas e silêncios. No processo de montagem, usamos uma gramática que experimenta e consolida uma visão estética, mas é, sobretudo, na sensibilidade e na percepção do humano que o filme vai ganhando seus contornos mais profundos. Eu e o Firmino Holanda temos uma parceria de longa data montando e roteirizando filmes. É uma parceria que tem dado muito certo.
Qual é o Nordeste - em especial o Ceará - de que seus filmes falam? Que mítica nordestina, ou que geografia, seus filmes criam?
O Nordeste, inventado por muitos povos e culturas, é uma projeção que comporta muitas visões, com seus simbolismos, seus recortes históricos e suas realidades percebidas por cada um, de forma diferenciada. Há também uma dimensão do sonho. Eu gosto dessa dimensão extraordinária atravessando o real, como um sonho. O Nordeste que percebo é o do movimento e das contradições. Culturalmente, a região que chamamos de Nordeste é muito rica e diversificada. Cada estado tem suas próprias características e o Ceará tem a sua mítica ligada ao homem andejo e à inventividade necessária para a sobrevivência, numa natureza quase sempre hostil. A geografia que eu recrio, embora assente-se na realidade, é também imaginária.
Como você avalia a força e a diversidade do cinema cearense hoje?
O cinema no Ceará, em sua diversidade, adquire uma força nova e conquista espaços importantes. Para chegarmos aqui, houve toda uma trajetória e uma geração que lutou pela descentralização da produção, para que todas as regiões produzissem cinema. Essa nova força do nosso cinema demonstra que o Estado do Ceará tem investido no cinema cearense com bons resultados. Uma característica do cinema cearense é a diversidade e a busca de diferentes públicos e nichos de mercado. Isso vem da nossa diversidade cultural étnica e cultural. Temos uma forte safra de filmes cearenses em cartaz: "Mais Pesado É O Céu"; "Motel Destino", do Karim Aïnouz; "Estranho Caminho", de Guto Parente; "Vermelho Monet", de Halder Gomes, e "A Filha do Palhaço", de Pedro Diógenes. O governo do Ceará fez do Museu de Imagem e do Som do Ceará - MIS um dos mais bem equipados da América Latina e brevemente teremos a Ceará Filmes para dar maior impulso à produção. Bons ventos estão soprando.