Leopardo da glória ruge para Irène Jacob

Aos 58 anos, a estrela de 'A Dupla Vida de Veronique' ganha troféu honorário no Festival de Locarno e agita o cinema europeu em parcerias com o polêmico Amos Gitaï

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Irène Jacob ficou surpresa ao saber que é mais conhecida no Brasil por sua atuação no thriller pop ' U.S. Marshals: Os Federais'

Por Rodrigo Fonseca

Especial para o Correio da Manhã

Eternamente lembrada por seu desempenho em "A Dupla Vida de Véronique" (1991), filme com o qual foi laureada com o Prêmio de Melhor Interpretação no Festival de Cannes, a atriz franco-suíça Irène Jacob se diverte ao saber que seu longa-metragem mais reprisado em telas brasileiras é uma narrativa de ação, sem nada em comum com o cult de Krzysztof Kieslowski (1941-1996) que a consagrou. Semana após semana, algum canal a cabo ou alguma TV aberta projeta "U.S. Marshals: Os Federais" (1998), no qual ela contracena com Wesley Snipes e Tommy Lee Jones em sequências vertiginosas.

Saber que gerações de brasileiros descobriram seu trabalho pelas vias de um thriller pop arranca um sorriso de Irène, que o foi escolhida para receber o troféu Leopard Club do 77º Festival de Locarno, que termina neste sábado.

"Gosto muito de perceber que a diversidade do cinema não me deixa engessada numa caixa, mas, pelo contrário, tira a minha imagem e o meu trabalho de rótulos. Gostei muito de atuar com Snipes nesse filme, que me mostrou o modo hollywoodiano de trabalhar, e é bom saber que essa narrativa segue viva, correndo o mundo", disse Irène ao Correio da Manhã durante a Berlinale, na capital alemã, onde participou com o polêmico "Shikun", hoje em trânsito por circuitos de exibição europeus.

Aos 58 anos, a estrela de "A Fraternidade É Vermelha" (1994) se prepara para voltar às telas no Festival de Veneza (28 de agosto a 7 de setembro) com outra narrativa controversa, com foco no conflito Israel x Palestina: "Why War". A direção é de Amos Gitaï, artesão autoral israelense com quem trabalhou em "Shikun". Nesse longa exibido no Festival de Berlim, a base do roteiro é um diálogo com a peça teatral "O Rinoceronte" (1959), de Eugène Ionesco (1909-1994). A partir dela, o realizador de "Kedma" (2002) e "Kadosh - Laços Sagrados" (1999) propõe a desconstrução das certezas políticas do Presente. A trama companha situações absurdas de 20 personagens num prédio israelense.

À época de sua exibição, o cineasta disse à reportagem: "Peço aos meus elencos que interpretem o que vamos contar sem agirem como robôs interessados no tapete vermelho da fama. Irène é muito propositiva".

Em sua passagem por Locarno, Irène comentou o que é saber propor em cena. "Cinema não é uma arte que a gente faz do sofá, sentados sozinhos. É uma arte de equipe na qual você precisa aprender a olhar o outro. A maneira como essa mirada é construída muda tudo. Eu costumo agir de um jeito X quando a câmera está longe, sem que eu consiga trocar com o olho do câmera, mas ajo de maneira Y quando a lente passa por mim e eu tenho plena consciência de como sou observada. A arte cinematográfica nasce do jogo de observação", diz Irène, que filmou "Rio Sex Comedy" (2010) no Brasil, no fim dos anos 2000. "Godard dizia que a TV encurta nosso olhar e o cinema alarga nossa forma de ver. Um festival como Locarno, por exemplo, que exibe Bergman na praça, para multidões, é um espaço que revisita obras de ontem atento às obras de hoje. Eu me sinto muito honrada desse prêmio que recebo desse evento pelo que ele simboliza, além do fato de já ter estado na cidade como jurada".

Na ativa desde 1987, quando participou de "Adeus, Meninos", de Louis Malle (1932-1995), ela conta que o trabalho de Gitaï foi uma trilha de desconstruções.

"Ionesco é uma referência no teatro para se pensar a incomunicabilidade entre as pessoas e o sendo do absurdo em sua estética é uma forma de traduzir a absoluta desconexão em que o mundo vive neste momento. Não acho que 'Shikun' é uma resposta ao conflto que se passa no Oriente Médio, mas, sim, à intolerância que nos cerca", diz Irène, mãe do ator Paul Kircher, hoje em ascensão no cinema francês. "É bonito ver ele encontrar seu caminho".

Depois de uma longa estrada em filmes de língua inglesa, entre os quais destaca-se "Othello" (1995), de Oliver Parker, Irène passou a se dedicar mais aos palcos europeus e a coproduções do Velho Mundo, como o recente "Rendez-vous avec Pol Pot", do cambojano Rithy Panh, que estreou no Festival de Cannes.

"Há muitas feridas abertas no Camboja e esse filme é uma abordagem muito pessoal dessas cicatrizes", diz a atriz, que sempre esteve cercada de cineastas de verve autoral em seu processo de criação. "Eu prezo muito pela liberdade. Foi o que encontrei nos sets de Amos Gitaï e no trabalho com Rithy. Gosto quando o cinema transborda fronteiras. Reencontrar títulos como 'A Fraternidade É Vermelha' me mostra que essas histórias ultrapassaram as bordas do tempo".