Marco Tullio Giordana: 'O algoritmo é o contrário da poesia'

Por Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Marco Tullio Giordana, cineasta

 

Em meio ao vastíssimo sortimento de propostas estéticas que fazem de Locarno um dos mais prestigiados festivais do mundo, um melodrama italiano sobre rejeição arrebatou corações no evento suíço, que encerra sua 77ª edição neste sábado, amparado numa grife autoral que está completando 45 anos de direção. Marco Tullio Giordana, um realizador milanês de 73 anos, é a cabeça e o coração por trás de "La Vita Accanto", um dos principais sucessos da programação de longas-metragens regida sob a curadoria de Giona A. Nazzaro.

Em 1980, o diretor esteve lá com "Maledetti Vi Amerò" (conhecido internacionalmente como "To Love the Damned") e foi laureado com o Leopardo de Ouro, o prêmio mais disputado da competição helvética. Desde então, emplacou cults como "Os Cem Passos" (Melhor Roteiro no Festival de Veneza em 2000) e o épico "O Melhor da Juventude" (Prêmio de Júri Popular no Festival de Roterdã). Voltou a Locarno não só para exibir uma tocante trama familiar, mas também para receber uma láurea honorária pelo conjunto de sua obra.

Em "La Vita Accanto", Giordana conta com um roteiro assinado por um titã da direção, Marco Bellocchio, hoje em cartaz no Brasil com "O Sequestro do Papa" (2023). A trama que encantou a Suíça narra a dor de uma jovem rejeitada pela mãe ao nascer com uma marca de nascença que se transforma numa pianista ao seguir os passos de sua tia musicista. Em entrevista ao Correio da Manhã, o cineasta milanês explica a dimensão folhetinesca do longa e o vínculo que tem com a tradição cinéfila da terra de Fellini e Antonioni.

"La Vita Accanto" promove uma cartografia de solidões ao falar do abandono sofrido pela jovem Rebecca e sua relação tumultuada com a mãe, cercada do apoio incondicional do pai e da irmã gêmea dele, sua tia que é craque no piano. O quanto essas figuras solitárias refletem o vazio existencial do presente?

Marco Tullio Giordana: São quatro solidões que correm em paralelo, presas numa armadilha afetiva da qual não se pode fugir. O código de sangue que as une parece ampliar as angústias daquela redoma sentimental onde estão confinadas. A escolha de ter personagens gêmeos me dá a chance de ampliar o tema da cumplicidade dentro de uma narrativa sobre pessoas que buscam uma conexão. Aprendi com o cinema de Luchino Visconti, e seus filmes magníficos, a contar o máximo possível sobre a condição humana ao me centrar na cumplicidade.

O senhor é parte de uma filmografia que revelou algumas das mais relevantes vozes autorais da História, nas telas. Bellocchio é uma dela. Como foi a parceria com ele?

Esse projeto nasce de um romance de Mariapia Veladiano e Bellocchio queria filmá-lo há muito tempo. Ele chegou a fazer uma versão do roteiro, tentou rodá-la, mas acabou desistindo. Quando ele me mostrou o script, eu gostei muito do que li e ele se propôs a me produzir. Na ocasião, ele falou: "Meta a mão no que escrevi e faça do seu jeito, siga o seu próprio caminho". Vendo o filme aqui em Locarno, percebo que fiz algo completamente diferente do que ele fazia. A experiência de ser produzido por um artista é algo singular, por que você sente estar trabalhando com alguém que pensa na arte em primeiro plano e, não, no orçamento, nas contas.

Quando o senhor fala em seguir o seu próprio caminho, fica uma questão acerca da visão de autor que rege seu cinema. Que caminhos o senhor persegue ao filmar?

Beatrice Barison, que interpreta Rebecca em sua fase adulta em "La Vita Accanto", não é uma atriz profissional e, sim, uma pianista. Fiz essa escolha porque eu não queria truques. Não queria filmar as mãos de uma dublê que soubesse tocar bem ao piano e depois compor com o rosto de uma estrela. Queria alguém que tocasse ao vivo, e com brilho. É uma decisão que reflete o cuidado que eu sempre tive com o realismo. Não tolero a hipótese de iludir a plateia, pois quero que a verdade se desnude em cena, diante da câmera. Não foi fácil seguir o caminho que trilhei pois sempre tive dificuldade de conseguir dinheiro para fazer os meus filmes, mas busquei a liberdade. Em qualquer época, sob qualquer forma de governo, a liberdade deve ser conquistada e não dada.

Ainda é possível manter a liberdade nestes tempos de salas de cinema vazias, por conta de uma evasão do público para o streaming?

Muitos produtos que eu vejo hoje nas plataformas são guiados por algoritmos. O algoritmo é o contrário da poesia, pois quando percebemos as fórmulas, a essência se perde. É como olhar para uma construção arquitetônica e só enxergar o cimento armado. A harmonia da arquitetura criativa se perde. Hoje, eu vejo o público do audiovisual preso em fórmulas, confinado a uma ideia estúpida de controle. A sobrevivência do cinema de hoje para o futuro só pode se dar com o desapego dessas convenções.