Os incompreendidos da fé

MUBI redescobre o drama francês 'A Prece', que evoca o cult de François Truffaut ao narrar o papel da religião na luta de jovens para sair do vício

Por Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Anthony Bajon é um jovem dependente químico que encontra paz na fé católica em 'A Prece', de Cédric Kahn

Ímã de controvérsias por onde passa, com seu olhar crítico sobre o papel sociabilização das religiões, "A Prece" ("La Prière") foi comparado a um clássico do cinema moderno - "Os Incompreendidos" (1959), de François Truffaut - em seu olhar sobre a juventude, referendado por uma série de elogios no Festival de Berlim de 2018. À época, saiu de lá com o prêmio de Melhor Interpretação, dado a Anthony Bajon (então com 24 anos), cuja comovente atuação como um delinquente juvenil assolado pelas drogas comoveu a capital alemã.

Mais recente experiência do astro francês Cédric Kahn (de "A Economia do Amor") na direção de longas-metragens, deste drama sobre redenção abriu debates quentes sobre a representação da Fé em todos os cantos onde foi exibido. Promete fazer o mesmo nas plataformas de streaming, ao ser redescoberto, seis anos depois de sua estreia, pela MUBI.

"Nosso empenho durante o processo de filmagem era conseguir que esta história sobre a luta de alguém que quer se desintoxicar possa tocar as pessoas de maneira universal, ao mostrar o descontrole das emoções", disse Kahn ao Correio da Manhã, em recente entrevista, na França.

Respeitado como cineasta por longas como "A Vida Vai Melhorar (2011), Khan visitou o Brasil em 2023, onde lançou a comédia dramática "Making Of", no Festival Varilux. O ator e diretor surpreendeu a crítica com a maturidade com que conduz os planos de "A Prece". O filme entra na grade do www.mubi.com no próximo dia 28. "A proposta aqui não é julgar a Igreja, nem elogiar a dimensão redentora que um grupo religioso pode ter para alguém que está sofrendo. Meu foco se divide entre a autodescoberta e a solidão. É um filme sobre o calvário de sair de um inferno aberto por escolhas erradas", disse o cineasta francês, que só no fim de semana de estreia de seu longa na França arrebatou 86 mil pagantes.

Em "A Prece", Kahn acompanha a perseverança de um grupo jovem da Igreja Católica, que tem na freira Myriam (a veterana cantora e atriz alemã Hannah Schygulla) uma referência de fé, para se livrar da tentação das drogas e do álcool. Muitos foram parar ali para se salvarem do vício, como é o caso do dependente químico Thomas (Anthony Bajon), agressivo diante da Palavra de Deus. De cara, o filme parece querer investigar o papel do Catolicismo e da liturgia de Cristo na recuperação de adolescentes. Mas, com poucos minutos, o cineasta deixa claro que a religião é só um detalhe ecumênico no arranjo narrativo seco que criou, lembrando o legado de Truffaut.

"Nos sets, Anthony realmente lembrava o personagem de Truffaut em 'Os incompreendidos', Antoine Doinel, que era o alter ego dele", disse Kahn ao Correio. "Mas não fiz uma releitura muito consciente do que aprendi vendo Truffaut. A questão era simplicidade: olhar o realismo sem feri-lo com muitos adereços fabulares. Esse era o caminho para levar às telas o sacrifício da fé".