Mania de Wim Wenders

Em cartaz no Brasil há seis meses com 'Dias Perfeitos', que está na grade da MUBI e no cine Estação Botafogo, diretor alemão ganha mostra no festival de curtas Kinoforum, em SP

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Wim Wenders, o consagrado realizadior alemão, vem estabelecendo marcas significativas nas salas de exibição do Brasil com seu belíssimo 'Dias Perfeitos'

Por Rodrigo Fonseca

Especial para o Correio da Manhã

Se durar mais dois dias no Estação NET Botafogo, onde será exibido hoje às 16h25, "Dias Perfeitos" ("Perfect Days") vai completar seis meses em cartaz no Brasil. Indicado ao Oscar de Melhor Filme Internacional, representando o Japão, esse tocante drama motivacional rodado pelo alemão Wim Wenders é o título mais longevo nas salas de exibição do país em 2024 - e em muito tempo. Só Costa-Gavras costuma ficar tanto tempo assim em nossas salas.

Chama mais atenção ainda o fato de que a produção segue em cartaz mesmo já tendo estreado em streaming, na MUBI. Em meio a essa resistência em circuito nacional de um longa-metragem avesso a fórmulas, seu realizador ganha um tributo, a partir de hoje, no Kinoforum, uma das mais importantes maratonas de curta-metragem da América Latina, realizada em São Paulo. O festival dedicou a ele uma mostra especial, chamada "Asas do Curta", em referência a seu cult "Asas do Desejo" (Prêmio de Melhor Direção em Cannes, em 1987).

Nessa programação especial do Kinoforum (que vai até 1º de setembro), dedicada ao artesão autoral germânico, foi selecionado o recente curta "Alguém Vem À Luz" ("Somebody Comes Into The Light"), realizado em paralelo às filmagens de "Dias Perfeitos", com o dançarino Min Tanaka. Espalhado por diferentes polos de exibição paulistanos (Cinemateca Brasileira, CineSesc, Circuito Spcine - Centro Cultural São Paulo (CCSP), Circuito Spcine - Tiradentes, Espaço Augusta, Museu da Imagem e do Som), o festival apresenta ainda outras pérolas do diretor. O menu inclui "O Mesmo Jogador Atira Novamente" (1967), "Silver City Revisited" (1968) e "Ângulo Inverso" (1982).

Em meio à celebração paulista e carioca de seu legado, Wenders tem novos projetos de não ficção em gestação, ao mesmo tempo em que comemora a conquista do Prêmio Honorário do Júri Ecumênico de Cannes ao conjunto de sua filmografia. A láurea foi atribuída a ele em maio, em meio à projeção de uma cópia restaurada de "Paris, Texas", cult que deu a ele a Palma de Ouro, há 40 anos. Neste momento, esse ensaio existencial de 1984 ensaia uma volta às telas da Europa, com projeções previstas na França e na Alemanha, onde "Dias Perfeitos", que já faturou US$ 25 milhões. No Velho Mundo, o longa segue em cartaz em Londres.

Escrito em três semanas a partir da encomenda de um projeto documental sobre os banheiros públicos do Japão, "Dias Perfeitos" rompeu com a demanda da não ficção e nasceu filme em forma de drama, sendo filmado em 17 dias. Seu faturamento nas bilheterias reacende a estrela de boa sorte de Wenders, até no céu de Hollywood. Na década passada, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas hollywoodiana acolheu seu nome entre seus concorrentes pelos .docs "Pina" (2011) e "O Sal da Terra" (2014), feito em duo com Juliano Ribeiro Salgado. Wenders agora volta com um filme cujo CEP é japonês, fincado a uma genealogia que o cineasta germânico de 79 anos aprendeu a conhecer a partir de sua cinefilia.

Radiante do primeiro ao último fotograma, "Dias Perfeitos" bate cabeça para o titã Yasujiro Ozu (1903-1963), diretor de joias como "Também Fomos Felizes" (1951), "Dia de Outono" (1960) e "A Rotina Tem Seu Encanto" (1962). Em sua formação de olhar, em paralelo a seu trabalho como fotógrafo, Wenders refestelou-se nos filmes dele. A fim de prestar tributo a ele, rodou "Tokyo-Ga", um poema documental de 1985, que é uma espécie de retrato fantasma a circundar as franjas delicadas de seus "Dias Perfeitos". É um espectro que ronda o olhar de Wenders não como assombração, mas, sim, como se fosse um alumbramento, pois se dá uma espécie de simbiose entre dois filmes.

Cada um com seu modo de ser cinema, eles traduzem momentos distintos de Wenders pelo país que ajudou a formar seu imaginário. Com Ozu, ele aprendeu a cultuar a serenidade do dia a dia. É esse o princípio que rege o cotidiano de Hirayama, um zelador vivido nas raias do esplendor por Koji Yakusho. Não se trata de um princípio de inércia. É o princípio da contemplação. O que se dá em cena é um rito contemplativo dos momentos que abrem mão de viradas bruscas.

Ele vem da mesma paisagem humana dos filmes de Ozu. Filmas para os quais "Tokyo-Ga" olha de modo melancólico, como se algo defunto de outrora estivesse a agrilhoar seu entendimento do cinema naquilo que o semiólogo Roland Barthes chamava de "foi aí", ou seja, o particípio da construção artística, um resquício pretérito. Mas a mirada que guia "Dias Perfeitos" é o gerúndio, ou seja, um tempo de fricção.

Depois de uma longa fase documental, iniciada com o fenômeno "Buena Vista Social Club", em 1999, Wenders volta lépido às telas, fazendo ficção, agarrado à poesia numa vertente heraclitiana ciente de que não se pode, jamais, molhar-se nas mesmas águas ao revisitar um mesmo rio, pois tudo muda. Acompanhamos, em sua trama, a vida de Hirayama, um limpador de latrinas. O papel deu a Koji o prêmio de Melhor Ator de Cannes.

Seguimos essa figura a partir da informação sentimental de que ele ama o rock'n'roll raz, degustando o ritmo em fitas K-7. Gosta também de ler. Ponto. Sua vida é isso: é se abrir à melodia e às palavras. Situações sutis com colegas de trabalho e múltiplas reminiscências de seu passado vão cruzar seu caminho, mas não vão abalar a harmonia que ele criou. Harmonia que a edição de Toni Froschhammer absorve numa acolhedora montagem, capaz de valorizar a luz apolínea da fotografia de Franz Lustig. É um filme que nos leva ao deleite das simplicidades e dos abismos que nos aferram a incertezas. É um Wenders sublime, que não larga das telas.