Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Temperos de Bigas Luna

Penélope Cruz e Javier Bardem em 'Jamón, Jamón', premiado em Veneza em 1992 | Foto: Divulgação

Ao longo de semanas a fio, no início dos anos 2000, o filme "A Camareira do Titanic" (ganhador da Pirâmide de Ouro no Festival do Cairo) mobilizou salas do circuito Estação. Sua narrativa arrebatava as plateias cariocas com a estética caliente de um artesão autoral espanhol que tomou o mundo de assalto a partir da década de 1970: Bigas Luna (1946-2013).

Designer e pintor, egresso da pátria que gerou transgressores como Carlos Saura (1932-2013), Pedro Almodóvar e Isabel Coixet, ele marcou a produção audiovisual europeia com narrativas de forte apelo erótico, nas quais comidas, corpos e volúpias desafiavam a moral de um país marcado pelo franquismo. Poucos artistas retrataram a masculinidade de maneira tão plural quanto ele, alquebrando o sexismo e recontextualizando a virilidade. Seu olhar impressionou a crítica já em seus primeiros longas, entre eles "Tatuaje, primera aventura de Pepe Carvalho" (1978), que será exibido pelo Festival de San Sebastián (20 a 28 de setembro), em sua seção de clássicos restaurados. Por aqui, vai haver um tributo a suas criações também. A partir desta quarta-feira, até o próximo dia 10, o circuito que ajudou a consagrar BL no Rio, somado à tela de projeção do Instituto Cervantes, promove uma bem-vinda revisão de seus filmes.

O professor Santiago Fouz Hernández, da Universidade de Durham, é um dos responsáveis pela retrospectiva no RJ, ao lado da filha do realizador, Betty Bigas. Esta noite, a partir das 18h30, no I. Cervantes, os dois se juntam a Carolina Sanabria (da Universidade da Costa Rica) para um debate sobre a obra do diretor, precedida pela projeção de seu último trabalho, concluído postumamente por seus colaboradores: "Bigas por Bigas" (2016).

"Um dos melhores elogios que Bigas Luna recebeu em vida se deu no Festival de Veneza, onde disseram que seu filmes poderiam ser comidos. Ele acreditava que o legado de seu cinema era provocar nas pessoas vontade de viver, uma vez que celebrava o sexo e a liberdade", diz Fouz-Hernández, num papo no saguão do Estação NET Rio, onde, nesta quinta-feira, às 21h, será exibido "Jamón, Jamón", pelo qual BL ganhou o Leão de Prata de Melhor Direção no Festival de Veneza, em 1992.

Campeão de bilheteria à época de sua estreia, "Jamón, Jamón" ajudou a revelar duas das maiores estrelas espanholas de todos os tempos: Penélope Cruz e Javier Bardem, que viriam a formar um casal, no fim dos anos 2000. Bardem ficou conhecido como o muso de Bigas depois de estrelar (sob a direção dele) o controverso "Ovos de Ouro", que ganhou o Grande Prêmio do Júri de San Sebastián em 1993. Graças a esse longa, Bardem ficou conhecido como um símbolo da desconstrução do "macho latino".

"O cartaz dessa película já era provocativo, com o personagem de Bardem segurando seus testículos num gesto de força, como se fosse capaz de tudo por se homem. Bigas quebrava essa expectativa dele ao criar uma representação da macheza caída, representando suas figuras masculinas como anti-heróis", explica Fouz-Hernández.

Autor de livros teóricos obrigatórios como "Live Flesh - The Male Body In Contemporary Spanish Cinema" e "Cuerpos de cine", o pesquisador se prepara para lançar "The Films Of Bigas Luna", que sai em 2025 pela Manchester University Press. É uma reunião de estudos sobre a relevância de BL para a representação de dilemas ibéricos promovidos pelo diretor a partir do êxito de "Bilbao", lançado por ele em Cannes, em 1978.

"Um filme como 'Tatuaje', por exemplo, registra todo o processo de transição pelo qual a Espanha passou, com a morte de Franco, conforme a censura do governo dele era derrubada gradualmente. Bigas chegou trazendo alegorias e metáforas, celebrando a força das mulheres, festejando a liberdade de expressão", diz Fouz-Hernández, lembrando que BL filmou em inglês, com Dennis Hopper (1936-2010).

Ele dirigiu o astro de "Easy Rider - Sem Destino" (1969) em "Golpe do Milagre" ("Reborn", 1981). Voltaria a combinar falas anglófilas com seu espanhol natal em "Os Olhos da Cidade São Meus" (1987), no qual dialogou com as cartilhas do thriller. Um dos filmes que melhor ilustram a diversidade da filmografia de Bigas é "A Teta e a Lua", que ganhou o prêmio de melhor roteiro em Veneza, em 1994. É uma comédia sobre uma criança que sonha em beber leite materno por muito tempo, conquistando um seio farto para si. A produção será exibida no Estação NET Rio neste sábado, às 21h.