Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Uma ilha chamada Sara Gómez

Uma das primeiras cineastas negras da América Latina, a cubana Sara Gómez tem sua obra reverenciada em mostra na próxima edição do Festival de San Sebástian | Foto: Divulgação

 

Prestes a iniciar sua 72ª edição, lotada de medalhões autorais (Mike Leigh, Costa-Gavras, Jane Campion, Pedro Almodóvar), o Festival de San Sebastián (no norte da Espanha) vai abrir uma fresta em seu recorrente engajamento na causa do empoderamento feminino e nas lutas em prol da equidade de gênero para iluminar o legado de uma mulher que ajudou a consolidar as estéticas de não ficção no cinema cubano: Sara Gómez (1943-1974).

Além de ser um ícone dos debates feministas no audiovisual, ela é vista como um pilar da peleja antirracista na América Latina. "De Cierta Manera", lançado postumamente em 1977, é hoje definido como um olhar seminal para debates da representação feminina numa perspectiva anticolonial. A produção se passa na região de Miraflores, onde o crescente romance entre um operário de fábrica e uma professora esbarra nas radicais diferenças que ambos têm sobre a vida revolucionária. Esse e cinco outros filmes da obra curta (porém contundente) de Sara - interrompida por sua morte, aos 31 anos, ocasionada por uma crise de asma - serão exibidos na maratona cinéfila basca, numa seleção de clássicos (restaurados) de Cuba.

Porção latina da retrospectiva Klasikoak, essa mostra foi batizada de "En La Otra Isla", que é o título de um dos primeiros exercícios autorais de Sara, finalizado em 1967. A produção estará nessa vitrine de San Sebastián que resgata, ao todo, 19 filmes cubanos rodados de 1960 a 1980. Integram esse pacote realizadores como Nicolás Guillén Landrián (1938-2003) e Santiago Álvarez (1919-1998). Os longas e os curtas que compõem esse painel passaram por restaurações digitais resultantes da colaboração entre entidades cubanas (Cinemateca de Cuba, ICAIC) e instituições internacionais, como a Elías Querejeta Zine Eskola, Vulnerable Media Lab / Queen's University (Canadá), Arsenal-Institut für Film und Videokunst (Alemanha), Altahabana Films (Madri), o coletivo Archivistas Salvajes (Cuba-San Sebastian) e o Institut National de l'Audiovisuel (França).

Egressa de Guanabacoa, onde cresceu sob a guarda de avós paternos e de tios, em uma família ligada à Filarmônica de Havana, Sara foi uma das bases de renovação dos meios de representar a debacle do machismo no já citado ICAIC, o Instituto Cubano del Arte e Industria Cinematográficos. Seus filmes misturavam registro etnográfico e poesia. Na condição de "cineasta revolucionária", a realizadora de "Isla Del Tesoro" (1969) e "Poder Local, Poder Popular" (1970) - ambos escalados por San Sebastián - estava preocupada em representar a comunidade afro-cubana, os dilemas enfrentados pelas mulheres de sua pátria e o cotidiano dos setores marginalizados da sociedade. Os ranços do colonialismo (e os traumas dele advindos) são os alvos de cineasta.

"Nos documentários de Sara, mostra-se a contribuição da revolução para diminuição das diferenças entre brancos e negros. Porém, ainda assim, a discriminação racial se apresenta como um processo que tem sido longo e lento", destaca o pesquisador Pedro Javier Gómez Jaime, em um trabalho acadêmico sobre Sara.

"A cineasta marca em Cuba não apenas um ícone por ser a primeira mulher cubana que se dedicou à realização cinematográfica, mas pelo imaginário que carregam as suas filmagens, procurando um mundo democrático trasladando ao cine seu próprio contexto. Seu trabalho possibilita ainda hoje um diálogo entre aspectos de índole ética, tanto quanto outros de índole estética ou política, e logra isto sem se distanciar dos problemas do seu cotidiano".

Em 1961, o documentário "Plaza Vieja", integrante do projeto "Enciclopedia Popular # 28", inaugura a carreira da realizadora, que se destaca ainda com "Iré a Santiago" (1964) e "Una isla para Miguel" (1968). Seu derradeiro documentário saiu em 1972: "Sobre Horas Extras y Trabajo Voluntario".

Este ano, San Sebastián será inaugurado com uma projeção de "Emmanuelle", da francesa Audrey Diwan, que revista um sucesso erótico europeu homônimo de 1974. No próprio dia 20, quando o festival começa, será exibida a produção brasileira "Ainda Estou Aqui", de Walter Salles, que conquistou o prêmio de Melhor Roteirona competição pelo Leão de Ouro de Veneza.