Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

CRÍTICA FILME - O BASTARDO: Western à escandinava

O dinamarquês Mads Mikkelsen vive um capitão que busca explorar as lavouras historicamente secas da região da Jutlândia | Foto: Divulgação

 

Produzido por Louise Vesth (de "Melancolia"), colaboradora de Lars von Trier, responsável por escavar orçamentos altos e garimpar holofotes internacionais generosos para o cinema de CEP escandinavo, "O Bastardo" é um épico histórico europeu que evoca, a todo tempo, a tradição essencial do faroeste: o desbravamento. O nome do gênero entre nós é uma tradução de far west, "o Oeste distante", as terras a serem conquistadas. John Ford eternizou essas conquistas em filmes memoráveis (como "No Tempo Das Diligências") que ajudaram a lapidar Hollywood como indústria, despertando inveja em filmografias do mundo inteiro.

Atentos aos EUA, os italianos inventaram o spaghetti - vertente B das histórias de cowboys - tentando decalcar a sanha homérica dos americanos. Ali mesmo pela década de 1960, entretanto, essa sanha estadunidense foi esgotada pela correção política, avessa ao espírito colonialista do gênero.

Os westerns que se fizeram notar mais e melhor naquele período eram outonais e declaravam o ocaso de uma forma narrativa. Basta lembrar a devastadora a sequência de "Meu Ódio Será Sua Herança" (1969) na qual caubóis de índole má vividos por William Holden, Ernest Borgnine, Ben Johnson e Warren Oates percebem que estão em desuso quando não há mais do que ser desbravado no Oeste. Quem roubou, roubou. O progresso chegou e a lógica do mundo a ser desbravado perdeu-se no ruído metálico de locomotivas. Sobrou para o bangue-bangue ser ecológico ou existencialista.

Coube à Dinamarca encontrar um lugar para o formato fordiano clássico, amparada no sempre elegante desempenho de seu astro mais popular, Mads Mikkelsen (de "A Caça"). É recorrente a aproximação dele a enredos sobre o limite do processo civilizatório numa sociedade que, nas aparências, parece não ter dilemas sociais - embora eles estejam lá. A palavra "civilização" é o eixo ético que tonifica a dramaturgia de "Bastarden" (título original, também conhecido como "The Promised Land") em sua aproximação de um enredo que evoca Ford ao falar da expansão de uma pátria por seus territórios hostis.

Nikolaj Arcel, cineasta que trabalhou com Mikkelsen em "O Amante da Rainha" (2012), volta a se aproximar dele para contar um périplo geográfico de obstinação. Usando todo o requinte de direção de arte que Louise Vesth lhe oferece, o realizador recria a realidade dinamarquesa do século XVIII, quando o Capitão Ludvig Kahlen (papel de Mads) - decide abandonar os campos de batalha a fim de cultivar as terras na península da Jutlândia. Fala-se que nada cresce por lá, fora arbustos pequenos e secos, mas Kahlen insiste, pede as benesses do rei e segue. Bate de frente com um nobre local, encara o desprezo de governantes e conta com a lealdade de ciganos que sempre foram proscritos. Seu Oeste no coração da Escandinávia registra intolerâncias que lembram as do universo rural hollywoodiano.

Arcel sabe que tem uma dimensão heroica em seu protagonista, similar a dos tipos vividos por John Wayne, mas não quer reduzi-lo a um arquétipo de vigilante. O empenho do realizador, expresso em planos visualmente requintados (de cores retintas), está em explorar o limiar entre loucura e ódio que uma onipotência expansionista pode gerar. A retidão de Kahlen parece apolínea, mas seu caráter é torto. Sua psique fraturada, explorada com gana por Mikkelsen, garante às telas um personagem complexo - e arrebatador.