Incluir Woody Allen em um currículo de parcerias com algumas das mais respeitadas vozes autorais do cinema internacional era uma experiência que Melvil Poupaud não poderia deixar passar, mesmo com toda a ameaça de "cancelamento" que cerca o realizador de "Annie Hall" (1977), aqui traduzido como "Noivo Neurótico, Noiva Nervosa". O convite veio para um filme que o mestre nova-iorquino rodou na França, com elenco majoritariamente egresso de lá e com uma trama mais próxima do suspense do que do riso, embora preserve o ingrediente essencial do realizador, o amor: "Golpe De Sorte Em Paris" ("Coup de Chance").
A produção estreia no Brasil nesta quinta-feira. Nela, Melvil dá vida a um arquétipo que, no caso de um cineasta mais corriqueiro, seria chamado de "vilão", mas no caso do diretor de "Blue Jasmine" (2013) é um coração fraturado... e perigoso.
"Existe um espaço de investigação da condição humana - a incerteza - que me interessa muito por espatifar as convenções morais que nos levam a julgar 'isto é certo' ou 'isto é errado'. Eu venho encontrado esse espaço no cinema sempre que um artista com ambição humanista me procura e me convida para ler seu script", disse Poupaud ao Correio da Manhã, durante o Rendez-vous Avec Le Cinéma Français, fórum de promoção da produção audiovisual de seu país, após terminar as filmagens com Allen.
Revelado às telonas aos 10 anos, em "A Cidade dos Piratas", do chileno Raúl Ruiz (1941-2011), com quem filmou múltiplas vezes, o músico e ator parisiense esteve nesse evento de novo este ano em uma prestigiosa condição: foi lá buscar um prêmio honorário pelo conjunto de sua carreira, o French Cinema Award. Havia acabado de atuar em um par de longas ainda inéditos ("Plus Forts Que Le Diable" e "Les Règles De L'art") e se preparava para ingressar no elenco de "Aimer Perdre", hoje em curso, quando conquistou a láurea do Ministério da Cultura de sua nação. Naquele momento, seu rosto estava em várias salas de exibição do Velho Mundo, onde "Golpe de Sorte em Paris" era exibido.
"Eu participei de filmes que passaram por Cannes ou por Veneza, mas em sessões paralelas, e não tiveram a melhor das bilheterias em cartaz, mas, ainda assim, preservaram seu lugar na memória das pessoas, ao carregarem a marca autoral de determinadas ou determinados cineastas que construíram uma identidade. Tive a chance de trabalhar algumas vezes com François Ozon e Arnaud Desplechin, que fazem parte dessa linhagem de criadores que fazem as pessoas se recordarem sempre de suas histórias. O mais importante do cinema de autor é que ele se faz assunto, gera debate, resiste", disse Poupaud ao analisar a relevância de diretores como Woody Allen.
Visto por 137 mil pagantes na França, "Golpe de Sorte Em Paris" se instaura numa linhagem woodyalleniana em que estão "Crimes e Pecados" (1989), "Ponto Final: Match Point" (2005) e "O Sonho de Cassandra" (2007), ou seja, enredos em que o olhar habitualmente romântico desse cineasta resvala na violência. O personagem de Poupaud, Jean, é um homem riquíssimo, casado com uma mulher bem mais moça, Fanny (Lou de Laâge). A vida afetiva deles é pura bonança e gozo até o dia em que ela esbarra acidentalmente com o escritor Alain (Niels Schneider), um antigo colega de escola, e fica encantada pelo sujeito. A alma livre do antigo companheiro de classe, expressa em sua aposta radical na arte, é um ímã para os hormônios e para os sonhos de Fanny, que acaba se envolvendo com o rapaz. Não demora para Jean descobrir e esboçar um plano para eliminar (na desinência mais radical desse verbo) o rival.
"Venho trabalhado nos últimos anos em narrativas passionais, que testam limites do querer, como foi o caso de 'Briga Entre Irmãos', de Desplechin, que finalizamos em 2022, e resgata um caminho sempre instigante para a arte cinematográfica, o melodrama. Gosto quando roteiros caminham pelo excesso", diz Poupad, que, aos 51 anos, integra o elenco do recente "Macello Mio", um dos concorrentes à Palma de Ouro deste ano, que presta um tributo ao legado de Marcello Mastroianni (1924-1996). "Ser ator é investigar extremos".
Envolvido ainda numa série de experimentos musicais, Poupaud lançou há pouco um livro de memórias, "Quel est Mon noM?", no qual relembra suas vivências, desde menino nos sets. "O livro foi uma forma de evitar frustrações possíveis de não criar meu próprio material", diz Poupaud, que atraiu elogios por seu desempenho sob a batuta de Allen.