Por: Rodrigo Fonseca Especial para o Correio da Manhã

Revolução pela alegria

Carro de resistência LGBTQIAPN no desfile da Mocidade Independente em 2020 | Foto: Divulgação

Pedacinho colorido de saudade, o confete faz estrela em "Não Vamos Sucumbir", inventário cinematográfico de cicatrizes, resiliências e batuques ligados ao maior espetáculo da Terra nos quesitos samba e integração social. Com olho de antropólogo e lente de poeta, o cineasta Miguel Przewodowski leva às telas, a partir desta quinta-feira (19), um registro (obrigatório) de um tempo em que o apito carnavalesco quase foi silenciado, parte pelo terror da covid-19, parte pela mordaça de um governo avesso à diversidade e à cultura.

Seu filme entra em circuito cartografando a luta de quem sua a camisa, ano a ano, para honrar a majestade de Rei Momo na Sapucaí. Seu mapeamento parte de uma geopolítica de guerra. A guerra que toda a comunidade do carnaval travou quando a cidade fechou suas portas - ali por março de 2020 - e adiou parte de seus sonhos, acossada pelo coronavírus. O gemido das cuícas deu lugar a tosses ferozes.

Em 2021, não havia como se falar em blocos, em carros alegóricos. No entanto, muita gente almejou voltar para a Avenida, o que só aconteceu em 2022. É dessa gente que Przewodowski fala, a partir de uma poética trança de memórias do quanto se batalhou para a festa daquele ano existir.

Interessado em dinâmicas sociais, o cineasta visitou barracões, acompanhou ensaios, filmou a peleja de um povo que faz tudo para a Quarta-Feira de Cinzas valer a pena. Pensou ainda toda a gênese desse evento de reverberação transcontinental que é a disputa anual dos grêmios recreativos do samba.

Alternando análises e vivências in loco, "Não Vamos Sucumbir" promove uma viagem pelos bastidores das escolas de samba sob o olhar de seus mais importantes pensadores, de suas realizadoras/de seus realizadores, de quem dança, de quem toca.


 

Miguel Przewodowski: 'O samba não tem fronteiras'

O cineasta Miguel Przewodowski mergulhou no universo das escolas de samba o doc. 'Não Vamos Sucumbir'. Em entrevista ao Correio, ele destaca a potência de nossa maior manifestação popular | Foto: Marcelo Faustini/Divulgação

Alternando análises e vivências in loco, "Não Vamos Sucumbir" promove uma viagem pelos bastidores das escolas de samba sob o olhar de seus mais importantes pensadores, de suas realizadoras/de seus realizadores, de quem dança, de quem toca. Realizador (com Christiane Torloni) do tratado ecológico "Amazônia, O Despertar da Florestania" (2019), Przewodowski flana agora por um outro ecossistema, abordando os conflitos políticos e os desajustes sociológicos por trás daquilo que agita a Avenida ali pelo mês de fevereiro debaixo de muita serpentina. Nesta entrevista ao CORREIO, o diretor explica a geografia da resistência que encontrou na alma carnavalesca do povo carioca.

"Não Vamos Sucumbir" faz sociologia, faz antropologia, mas faz sobretudo poesia ao propor um inventário das vivências do carnaval no Rio. De que maneira essa celebração dionisíaca da vida redesenha o imaginário dos cariocas, para a própria cidade e para o mundo?

Miguel Przewodowski: Olhando para o Rio de hoje, uma cidade cada vez mais setorizada e acuada pelos impactos reais e psicológicos da violência, o carnaval das escolas de samba cria numa licença poética um espaço de colaboração e convívio, onde as diferenças abissais, territoriais e sociais da cidade, podem ser parcialmente harmonizadas por meio da disputa no campo do simbólico proposto pela arte, pela criação. Mais do que isso, os desfiles das escolas têm sido, ao longo de quase um século de trajetória, um ambiente onde é possível redimensionar a História Oficial ou reconta-la com elementos muito mais democráticos que incorporam narrativas e olhares plurais dos inúmeros saberes da nossa diversidade. Mas nem sempre essa voz da diversidade e das camadas populares esteve num primeiro plano, como hoje pode estar, e, em muitos momentos da História, ela teve que ser mantida camuflada em elementos capazes de driblar os olhares sociais persecutórios das elites brancas e da censura de instancias oficiais. O filme fala desse caminho de negociação e resiliência ao longo dessa trajetória e das razões que seguem dando força e significado as escolas. O vigor e a relevância do carnaval das escolas começa muito antes do evento oficial e isso é algo que transforma as comunidades e a cidade.

Como se dá essa transformação?

Muita gente que assiste ao desfile não faz a menor ideia do papel das escolas nas comunidades. Ao longo do ano, as escolas empregam e capacitam profissionais das suas comunidades nas mais diversas áreas. Muitos têm nesse entorno das escolas o sustento. As quadras das escolas são lugares de integração e reconhecimento cultural da comunidade. A disputa do carnaval que acontece no Sambódromo não acontece nos ensaios na quadra que frequentemente recebem de forma extremamente respeitosa sambistas e componentes de outras escolas. O samba não tem fronteiras e promove a integração. Promove a cultura do respeito à tradição e ao valor da arte como um bem maior. Tudo isso chega ao carnaval e ao público dos desfiles. Acho que esta revolução pela alegria que desfila nas escolas ensina e dá orgulho ao carioca. Ela é muito potente e a população reconhece isso, se sente representada no melhor do espirito do seu povo, tão inventivo e espirituoso.

O que o carnaval ainda simboliza em relação às tensões sociais da cidade?

A população percebe que temos aqui provavelmente o maior evento de arte coletiva do mundo. Todo este potente processo de atuação das escolas de samba nas suas comunidades e na cidade é de grande complexidade e envolve instâncias muito particulares, o que faz com que seja impossível de ser transposto na íntegra de seu espírito para outras partes no mundo, por mais que tentem. Ele tem muito a nos ensinar sobre nós e principalmente ao pensamento dicotômico e separatista que cada vez mais se desenha no mundo. Infelizmente no Brasil as escolas de samba ainda não ganharam o lugar merecido nas instituições acadêmicas que teimam, muitas vezes, em reduzi-las a um fenômeno menor, alegórico ou meramente de impacto econômico e ao turismo.

Como foi estruturado o mapeamento dos personagens do filme e de que forma os diferentes atores sociais/arquétipos da festa de Momo foram desenhados em sua dramaturgia?

Contei com a brilhante consultoria de Antônio Vieira, pesquisador e grande artista gráfico do carnaval. Desde o primeiro momento, quando tive a ideia de fazer o filme, ele me respaldou com informações, desenhos de pautas e uma excelente pesquisa de personagens. Graça a ele cheguei com certa facilidade a figuras emblemáticas do nosso carnaval e a pensadores desta festa e das manifestações populares. Traçamos juntos um mapa que tanto abrangia os aspectos históricos - quase sempre presente nos meus filmes e tão necessários a esse argumento - quanto a contemporaneidade e suas questões. Fizemos para isso ótimas entrevistas com pesquisadores, carnavalescos e componentes de diversas escolas e acompanhamos desde o princípio o processo de criação do carnavalesco João Vitor Araujo para o desfile de 2020, dentro do barracão da Paraiso do Tuiuti. Em 2020, o João era também o único carnavalesco negro do Grupo Especial. O único numa manifestação originalmente criada por trabalhadores negros e pobres da cidade do Rio de Janeiro. Acho que isso fala bastante sobre o tema e seu momento. A Paraiso do Tuiuti é uma escola de São Cristóvão com grande tradição de carnaval e importância na comunidade.

Como foi a relação com a escola?

Desde o início, ela nos acolheu maravilhosamente, tanto no barracão como na quadra, além de também nos ensaios de rua. O meu interesse era fazer um filme que discutisse de forma atemporal esse papel das escolas, mostrando o que existe antes de um desfile e o seu papel social e cultural que não pode ser visto na integra na avenida e nas tevês. Sem dúvida o carnaval das escolas é um tema muito vasto e o que o filme traz é apenas um recorte. Sofri bastante na edição tendo que sacrificar tantas coisas interessantíssimas e até personagens e aspectos que não caberiam num único filme ou que teriam mais força se acompanhados de imagens e arquivos que não tínhamos como adquirir. Acharia muito bacana se um dia esse material pudesse ser ainda usado numa série.

Um dos aspectos técnicos que mais se destacam no filme é sua engenharia de som, para dar conta do estrondo que é o carnaval. Como esse desenho sonoro foi pensado?

O desenho de som foi pensado como um elemento narrativo que pudesse trazer sensorialmente a atmosfera do carnaval e suas transformações ao longo tempo assim como a tão relevante espiritualidade da festa. Priorizamos os registros captados diretamente com o intuito de levar para sala de cinema a ambiência das diferentes locações com autenticidade, mas dosando e equalização irregularidades sonoras que pudessem interromper esta imersão necessária à unidade do filme. Por outro lado, acompanhando a montagem e criando outro tipo de unidade, o som busca rupturas para ajudar a dinâmica de momentos narrativos mais densos e criar elipses temporais já que uma das linhas narrativas do filme é a criação de um desfile e a gradativa e crescente inserção da comunidade durante o processo ao longo dos meses antes do carnaval. Nesse sentido, o som acompanha a entrada de novos elementos a cada etapa deste caminho até a concentração, os desfiles e a situação do público do Sambódromo.

Da Amazônia para os barracões das escolas ( Sambódromo), seu cinema faz um trânsito entre geografias, humanas e físicas, sempre com um olhar (geo) político sobre a sobrevivência dos povos. Levando essa mirada para o universo do carnaval, o que mais mudou na economia dessa festa na virada dos séculos XX para o XXI?

Em 2019, o prefeito da cidade era Marcelo Crivella, bispo da Igreja Universal declaradamente contra os desfiles de carnaval. O então presidente do país era um homem que desprezava a cultura e as expressões populares. Vi naquele momento, na prática, como as escolas de samba tiveram novamente que se reinventar diante desse duplo antagonismo para fazer sem recursos financeiros um carnaval que fizesse jus à grandeza da sua história. Testemunhei a paixão e a determinação como principais combustíveis na realização daquele grande carnaval. Reconheci certa semelhança entre o processo que vivia na realização do filme, sem patrocínio, feito em grande parte com recursos próprios das duas produtoras associadas, com uma equipe altamente colaborativa, comprometida e apaixonada. Tudo fazia sentido, pois estava claro o que era necessário ser feito para que pudéssemos honradamente atravessar e superar a pobreza daquele momento histórico da cidade e do país. Entendo que o cinema, como uma escola de samba, consideradas as proporções, é também um trabalho criação coletiva onde todos os elementos importam e resultam. Acho que esse espelhamento da coletividade ajudou em muito a respaldar, dar gás e nos fazer entender que não estávamos sós. Claro, que tudo isso poderia ser feito com recursos de uma forma muito mais confortável, mas talvez eu não atentasse, como aconteceu, sobre esse elemento motriz básico que dá sentido à criação. O carnaval das escolas oscila entre períodos com apoios econômicos e ou outros mais pobres. Na linha do tempo do filme, esse é um viés abordado em especial pelo (jornalista e escritor) Fabio Fabato, que compara os carnavais patrocinados da primeira década deste século, por vezes engessados por compromissos com patrocinadores, com o vigor de desfiles do século passado e do final da segunda década deste século, quando os recursos estavam mais escassos. Conhecer a História nos faz ter a possibilidade de pensar nas possíveis reincidências e antecipar problemas futuros. O que vemos agora é que, mesmo depois da ameaça da pandemia e mesmo depois do não carnaval de 2021, com a possibilidade da finitude, a festa voltou em 2022 com ainda mais vigor e com força criativa e atitude política. Isso inclusive me ajudou muito a encontrar o nome do filme. As ameaças mudaram de endereço mas seguem existindo e a arte das escolas seguirá dando a resposta à altura.