Dois anos depois ter consagrado o filme de ficção de maior prestígio da Costa Rica nas últimas duas décadas, chamado "Tenho Sonhos Elétricos", a diretora mais badalada daquele território, Valentina Maurel, consolidou a boa reputação de seu engenho narrativo ao ser premiada em dois festivais estrangeiros de peso: Locarno, na Suíça, e San Sebastián, na Espanha. O evento ibérico garantiu a ela a láurea principal da mostra Horizontes Latinos, seção para onde essa cineasta regressa este ano, agora na condição de júri.
A partir desta sexta-feira (20), ela vai analisar os 14 títulos selecionados para essa competição de tônus luso-ibero-americano do evento basco, no qual terá como colegas dois outros jurados: o crítico argentino Fernando Juan Lima e o produtor espanhol Pedro Hernández Santos. Entre os concorrentes, há duas produções com o Brasil em seu DNA: "Cidade; Campo", de Juliana Rojas, e "Dormir de Olhos Abertos", de Nele Wohlatz. É pena que o circuito nacional não tenha abraçado o longa de Valentina.
"Sou parte de uma classe média artística e vejo a liberdade que existe nesse universo sob uma perspectiva me dá margem a buscar outras formas de criação", disse a realizadora ao Correio da Manhã em sua estreia em San Sebastián, que vai inaugurar sua edição de número 72, na sexta, com "Emmanuelle", da francesa Audrey Diwan (nova versão para o clássico erótico homônimo de 1974).
Valentina brilhou lá, faz pouco, com seu drama de tons cômicos sobre paternidade, que chegou a ter espaço por aqui só via streaming, na plataforma MUBI. Em 2022, essa ágil narrativa garantiu a Valentina o prêmio de Melhor Direção na competição oficial pelo Leopardo de Ouro do evento suíço. Seu doce estudo sobre reeducação afetiva ganhou por lá ainda láureas de Melhor Atriz (Daniela Marín Navarro) e Melhor Ator (Reinaldo Amien Gutiérrez). Sua trama tem como foco o duro processo de amadurecimento de uma adolescente criada num ambiente artístico. Eva (papel de Daniela) e seu gato são amigos inseparáveis, que passam por problemas depois que a mãe da menina decide expulsar o felino de seu lar. A saída que Eva encontra é ir viver com o pai: um tradutor e aspirante a poeta (vivido por Gutiérrez) que não parece muito disposto a crescer e ter responsabilidades sentimentais, embora ame sua filha sobre todas as coisas. A fotografia de Nicolás Wong Diaz é um assombro, em sua habilidade de dialogar com códigos do realismo.
"Cheguei a arriscar algumas experiências com a poesia quando era mais nova, de forma amadora, impulsionada pela jovialidade. Eu tentei escrever o filme com essa mesma sensação de risco que tinha, ainda adolescente, quando arriscava escrever poesia. A veia poética já existia em mim, mas, com o tempo, veio lucidez", diz Valentina.
Seu roteiro é um dos poucos estudos recentes - no cinema latino - sobre a força amorosa de um homem na casa dos 40 anos em que essa figura não é massacrada sob ferramentas da correção política. Do começo ao fim, "Tenho Sonhos Elétricos" esbanja empatia por todos os gêneros e identidades. "O horror do machismo, com toda a violência que ele produz, nunca será rechaçado se a gente não falar dos homens com liberdade e com respeito", disse Valentina. "O que me motivou a falar de paternidade, nesse filme, é estabelecer uma mirada de cumplicidade afetiva entre a figura de um pai poeta e as mulheres. Tenho uma figura masculina que, pela relação com a arte, vai além dos arquétipos e desafia estereótipos. O que me interessa é falar de gente, sem julgar ninguém, embora reconheça a tendência excludente da América Latina na forma vigente do sexismo".
No próximo dia 28, o Festival San Sebastián encerra suas atividades anunciando as decisões do júri de Valentina e se seu júri principal, que concede a Concha de Ouro. No encerramento, será exibido o drama romântico "Todo Tempo que Temos" ("We Live in Time"), do irlandês John Crowley, com Florence Pugh e Andrew Garfield.