Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Donostia em tempo de cinema

Nova versão de 'Emmanuelle' abre o Festival e integra a relação de concorrentes à Concha de Ouro | Foto: Divulgação

Localizada no norte da Espanha, numa área estimada em 61 km² banhada pelas águas do Golfo da Biscaia, a cidade de San Sebastián, fundada em 1180 d.C., inaugurou em 1953 um dos festivais de maior prestígio do mundo, capaz de atrair cineastas do mais alto calibre criativo. O evento completou sete décadas conseguindo se renovar, sintonizando-se com as pautas mais urgentes da atualidade.

Não por acaso, ele inicia nesta sexta-feira (20) sua edição de número 72 com a projeção do que promete ser um pleito feminista: a nova versão de "Emmanuelle". Sua programação se insere num contexto histórico de respeito, uma vez que o evento fez fama com sua habilidade de revelar correntes estéticas.

Desde a década de 1950, sua seleção consagra expressões autorais com a láurea chamada Concha de Ouro, batizada em referência ao símbolo da região. Sua geografia, vista do alto tem formato da carapaça que projete os moluscos.

Esse troféu já coroou muitas grifes da boa direção, como o italiano Dino Risi, os franceses Eric Rohmer e Claude Chabrol, a venezuelana Mariana Rondón, o mexicano Arturo Ripstein, o poderoso chefão estadunidense Francis Ford Coppola, o sino-americano de Hong Kong Wayne Wang, o escocês Peter Mullan, a georgiana Dea Kulumbegashvili e o boliviano Jorge Sanjinés. Até Marlon Brando foi coroado lá, em sua única experiência como realizador, o faroeste "A Face Oculta" (1961).

Para o Brasil, só houve uma Concha dourada, a de 2019, conquistada por "Pacificado", dirigido por Paxton Winters no Morro dos Prazeres. Desta vez, não há sinal de realizadoras/es nacionais na competição principal, que terá a diretora basca Jaione Camborda como presidente do júri (ler entrevista a seguir).

Seu time de juradas/os reúne a jornalista e escritora argentina Leila Guerriero, o ator e diretor americano Fran Kranz, a produtora francesa Carole Scotta e os cineastas Christos Nikou (da Grécia) e Ulrich Seidl (da Áustria). Essa turma vai analisar as 16 produções em concurso, entre as quais o esperado "Conclave", do germânico Edward Berger (o mesmo de "Nada De Novo No Front") cotadíssimo para o Oscar. Disputam com ele diretoras em franca ascensão, como a madrilena Icíar Bollaín e a chilena Maite Alberdi; medalhões como o nonagenário franco-grego Costa-Gavras; o mestre asiático do suspense Kiyoshi Kurosawa; e campeões de bilheteria como o parisiense François Ozon, que venceu lá em 2012, com "Dentro da Casa".

No dia 21, fora dessa disputa, a atriz australiana Cate Blanchett, oscarizada duas vezes (por "Blue Jasmine" e por "O Aviador"), vai ao festival buscar uma láurea honorária, o troféu Donostia. Esse é o nome de San Sebastián em basco, um dos sotaques falados por lá, incluindo sua derivação mais antiga, o Euskera, considerada a língua mais antiga da Europa. Nesse ambiente, de praia, famoso pelos pintxos (iguarias culinárias que combinam rodelas de pão com mariscos, pimenta, crustáceos, queijos e presunto), haverá um segundo Donostia de Honra, a ser entregue (no dia 26) a Pedro Almodóvar. De quebra o diretor de "Volver" (2006) vai exibir por lá "O Quarto Ao Lado" ("The Room Next Door"), seu primeiro longa em língua inglesa, contemplado com o Leão de Ouro de Veneza no dia 7 de setembro.

Esse mesmo felino fez a fama da diretora do remake de "Emmanuelle", a francesa de origem libanesa Audrey Diwan. Ela ganhou o Leão em 2021, por "O Acontecimento". Caberá a ela abrir San Sebastián com uma releitura - para tempos marcados por lutas em prol da equidade de gêneros - de um clássico do erotismo, definido por alguns/algumas historiadores/as como cafona e por outra/os como necessário. Trata-se de um clássico que celebra 50 anos em 2024. Em 1974, o fotógrafo e escultor francês Just Jaeckin (1940-2022) estreou como cineasta com uma adaptação do romance best-seller homônimo publicado em 1967 pela franco-tailandesa Marayat Rollet-Andriane (1932-2005), conhecida como Emmanuelle Arsan. O livro vendeu horrores e adaptação audiovisual dele repetiu esse feito nas bilheterias, no mundo todo, a um ponto de ter somado 8,9 milhões de ingressos vendidos na França. Sua arrecadação mundial beirou US$ 20 milhões (uma fortuna para a época), abrindo uma franquia alimentada por seis outros longas e sete telefilmes. Esse fenômeno transformou sua protagonista, a holandesa Sylvia Kristel (1952-2012), numa estrela e num sinônimo de libido em tempos em que não se falava de sororidade.

Noémie Merlant (de "Retrato de uma Jovem em Chamas") será a estrela do "Emmanuelle" de Diwan. Em sua trama, que será projetada nesta sexta no abre da disputa pela Concha de Ouro, a personagem está à procura de um prazer perdido e viaja sozinha para Hong Kong numa viagem de negócios. Por lá, trava numerosos encontros afetivos e conhece Kei, um homem que a ilude constantemente - um pouco com acontecia na adaptação de Jaeckin.

Ainda nesta sexta, San Sebastián tem tudo para aplaudir o Brasil numa mostra paralela, a Perlak (Pérola), na exibição de "Ainda Estou Aqui", de Walter Salles. O filme iniciou sua carreira no Festival de Veneza, de onde saiu com o prêmio de Melhor Roteiro (dado a Murilo Hauser e Heitor Lorega). Produzido por Rodrigo Teixeira (de "A Vida Invisível" e "O Farol"), esse drama marca a volta de Salles à ficção 12 anos depois de "On The Road" ("Na Estrada"). Seu enredo, baseado em romance biográfico homônimo de Marcelo Rubens Paiva, é ambientada no Rio de Janeiro do início dos anos 1970, quando o país enfrenta o endurecimento da ditadura militar, pós AI-5. No epicentro da dramaturgia há uma família, os Paiva: Rubens (Selton Mello), Eunice (Fernanda Torres), filhas e filhos. Eles vivem na frente da praia, numa casa de portas abertas para os amigos, com música e alegria reinantes. Vivem assim até o dia em que Rubens é levado por agentes do governo à paisana e desaparece. Eunice - cuja busca pela verdade sobre o destino de seu marido se estende por décadas - é obrigada a se reinventar e traçar um novo futuro para si, para sua prole e para a luta pela democracia. Fernanda Montenegro vive Eunice em idade mais avançada.

Neste domingo, na mostra Horizontes Latinos, o cinema brasileiro busca nova consagração com "Cidade; Campo", de Juliana Rojas, que ganhou o prêmio de Melhor Direção na Berlinale, na seção Encontros. A realizadora arrebata plateias pelo modo como celebra a força feminina e como enfrenta tabus reincidentes na representação do amor queer. Seu roteiro se divide em dois hemisférios: num, uma agricultora que perdeu tudo na tragédia de Brumadinho se muda para a metrópole; noutro, um casal de namoradas vai tentar a sorte num sítio isolado.

No dia 28, San Sebastián encerra suas atividades anunciando as decisões do júri de Jaione e exibindo o drama romântico "Todo Tempo que Temos" ("We Live in Time"), do irlandês John Crowley, com Florence Pugh e Andrew Garfield.