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'Histórias sobre mulheres estão nascendo de nós, mulheres'

Por Rodrigo Fonseca

Especial para o Correio da Manhã

Um ano depois de sua passagem pelo Festival de San Sebastián (cidade do norte da Espanha onde nasceu), a diretora Isabel Herguera tem um compromisso marcado com o Brasil: no dia 3, o filme que lhe valeu uma indicação à Concha de Ouro, "El Sueño De La Sultana", terá projeção no Animage, a maratona cinéfila do Recife. Desde a suspensão do Anima Mundi, em 2019, o evento pernambucano se impõe como a mais importante vitrine de animação do Brasil e uma das mais respeitadas de toda a América Latina. Tem produção do mundo todo lá. Suas mostras estarão abertas ao público a partir de terça, dia 1º.

Conhecida pelos curtas "Bajo La Almohada" (2012) e "La Gallina Ciega" (2005), Herguera fez de sua entrada no terreno dos longas-metragens um chamado aos pleitos feministas. "El Sueño De La Sultana" arrebatou os olheiros de streamings e distribuidoras pela força de sua direção de arte. Seu roteiro é derivado de um conto sci-fi indiano de 1905 sobre uma nação utópica chamada Ladyland, onde as mulheres estão no Poder.

Na entrevista a seguir, Isabel fala de sua investigação narrativa ao Correio da Manhã.

Seu sucesso na competição de San Sebastián põe seu nome em relevo na recente onda de mulheres que estrearam na direção de longas buscando debater a luta pelo empoderamento feminino. Como esse boom de realizadoras te inspira?

Isabel Herguera - Cresci numa cultura cinematográfica na qual o ponto de vista hegemônico das narrativas era masculino. Toda a história da Nouvelle Vague, com exceção de Agnès Varda, foi pilotada por homens. O neorrealismo é um movimento de homens. Em todos os movimentos que transformaram o cinema, as mulheres eram personagens de histórias que eram narradas por homens. Esse foco agora se expandiu. Nos últimos 20 anos, podemos falar de heroísmo sem falar de John Wayne. Não há mais uma exclusividade para os caubóis. As histórias sobre mulheres estão nascendo de nós, mulheres. Mas é importante dizer que o cenário de trabalho em que debutei, a animação de curtas-metragens, sempre teve lugar para nós. Nos longas, isso está mudando. Estamos chegando.

Como é a realidade da indústria animada espanhola?

Isabel Herguera - Eu sou uma cria do curta-metragem, espaço onde não existe uma cobrança de resultado no orçamento. É um lugar de produção independente, de temas adultos, onde todas as questões podem ser tratadas de modo frontal. Era virgem nas dinâmicas industriais do cinema até pouco tempo.

Como foi a construção de "El Sueño de la Sultana" em sua relação com a tradição gráfica do Velho Mundo

Isabel Herguera - Encontrei o livro que nos inspirou em 2012 e comecei a desenvolver o filme em 2017. Nosso orçamento era mínimo, bem menos do que necessitamos. A produção levou três anos, acontecendo durante a pandemia, em que o modelo de teletrabalho funcionava bem nas práticas processuais da animação, onde as etapas da construção do filme podem ser feitas isoladamente por cada artista. Usei muitas referências da pintura, de quadrinhos e da literatura indiana.

Desde 2019, o maior festival de animação das Américas, o Anima Mundi, está suspenso, por uma falta de verbas inerente à política (anti)cultural de Bolsonaro. Que memórias tem do evento?

Isabel Herguera - Sou amiga de Léa Zagury e de Marcos Magalhães, que integram o núcleo fundador do evento. É uma lástima ele não estar acontecendo. Gerações de talento surgiram do Anima Mundi. Era um festival muito generoso, que verberava mundialmente, e conseguia levar nossos filmes para o Rio, para São Paulo, para Brasília. É um absurdo sua ausência.