50 anos depois, Emmanuelle regressa

Fenômeno de bilheteria em 1974, o drama erótico que consagrou Sylvia Kristel ganha nova versão, que abre o Festival de San Sebastián, sob a direção de Audrey Diwan

Por Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã  

Noémie Merlant estrela a versão da realizadora Audrey Diwan para o clássico libidinoso dirigido pelo fotógrafo e escultor Just Jaeckin nos anos 1970

No dia 20 de setembro, quando Audrey Diwan abrir o 72° Festival de San Sebastián, na Espanha, com a nova versão de "Emmanuelle", em concurso pela Concha de Ouro, um novo capítulo da história do feminismo nas telas haverá de ser escrito. É a promessa que cerca o mais recente longa da diretora Audrey Diwan, ganhadora do Leão de Ouro de Veneza, em 2021, por "O Acontecimento". Ela volta com uma releitura, para tempos marcados por lutas pela equidade de gêneros, de um clássico do erotismo, definido por alguns como cafona e por outros como necessário.

É um clássico que celebra 50 anos em 2024, e tem sua volta ao circuito sendo negociada por cinematecas e salas dedicadas ao chamado filme de arte. Em 1974, o fotógrafo e escultor francês Just Jaeckin (1940-2022) estreou como cineasta com uma adaptação do romance best-seller homônimo publicado em 1967 pela franco-tailandesa Marayat Rollet-Andriane (1932–2005), conhecida como Emmanuelle Arsan. O livro vendeu horrores e adaptação audiovisual dele repetiu esse feito nas bilheterias, no mundo todo, a um ponto de ter somado 8,9 milhões de ingressos vendidos na França. Sua arrecadação mundial beirou US$ 20 milhões (uma fortuna para a época), abrindo uma franquia alimentada por seis outros longas e sete telefilmes. Esse fenômeno transformou sua atriz principal, a holandesa Sylvia Kristel (1952-2012), numa estrela e num sinônimo de libido em tempos em que não se falava de sororidade.

Noémie Merlant (de "Retrato de uma Jovem em Chamas") será a estrela do "Emmanuelle" de Diwan. Na trama, que discute empoderamento, a personagem está à procura de um prazer perdido e viaja sozinha para Hong Kong numa viagem de negócios. Por lá, trava numerosos encontros afetivos e conhece Kei, um homem que a ilude constantemente - um pouco com acontecia na adaptação de Jaeckin. "Estou no cinema em busca de uma angústia essencial à condição feminina, que mostra o quanto já fomos submetidas a violências em relação aos direitos sobre o corpo", disse Diwan ao Correio da Manhã via Zoom, quando iniciou o projeto "Emmanuelle".

Pouco antes de morrer, Sylvia Kristel lançou-se em experiências nas artes plásticas e arriscou dirigir um filme, um curta-metragem de animação chamado "Topor et Moi", exibido no Brasil pelo festival Anima Mundi, em 2008. À época, ela conversou com este repórter sobre o impacto de "Emmanuelle" em sua vida, relembrando hostilidades que sofreu. Impróprio para menores de um salário mínimo, o ideal burguês de prosperidade – alvo de todo pleito por igualdade, fosse marxista ou não, nos idos dos anos 1970 – foi devassado nos cinemas, pelas vias da moral nupcial, por Jaeckin que, após décadas encarado apenas como caça-níqueis erótico, ganha agora uma dimensão de rebeldia política.

"Na França dos anos 1970, Jaeckin apostou no sucesso, queria encher salas, ainda que o fizesse a partir de filmes com requinte nos enquadramentos. O problema é que fazer sucesso incomoda. A gente incomodou", disse Sylvia. "O desejo é essencialmente subversivo, pois ele dá poder. Ele liberta aquilo que a sociedade só permite por debaixo dos lençóis, entre quatro paredes".

Celebrizado ainda por uma canção de Pierre Bachelet (1944-2005) batizada com o nome de sua personagem título, "Emmanuelle" nasceu de uma encomenda do produtor Yves Rousset-Rouard depois de ele conferir o frenesi popular em torno de "O Último Tango Em Paris", em 1972, que também tinha um tônus de erotismo. Jaeckin assumiu a tarefa de filmar a trama de Marayat, rodando entre 10 de dezembro de 1973 e 6 de fevereiro de 1974. Dividiu-se entre locações na Tailândia e em Paris. Sylvia ganhou o papel principal por acaso: ia fazer um teste para um comercial e acabou entrando na sala errada, onde estava sendo feita a audição para o elenco da saga de Emmanuelle. Sua inteligência impressionou Jaeckin.

"Existia uma clara objetificação do corpo feminino naquela época, o que perdurou na História, mas havia na figura de Emmanuelle, e sua carência, um vazio e um tédio inerentes a um modo alienado de ser da alta classe média. Quando aquela mulher desce do salto e vai ser feliz, em busca do querer, assumindo sua potência feminina sem freios, várias convenções do modo burguês de ser eram demolidas. Isso me dava dignidade", disse Sylvia, numa entrevista de 2008. "Embora a série tenha se perdido em meio a continuações sensacionalistas, o primeiro filme preserva ainda uma poesia de época".

O desafio de Diwan é preservar essa dimensão poética. "Nunca esperei iniciar uma carreira como realizadora e permanecer nela, uma vez que venho da literatura e entrei no cinema na condição de roteirista. Optei por dirigir por necessidade, para poder viabilizar projetos", disse a cineasta pouco antes de começar a filmar "Emmanuelle" com Noémie Merlant. "Sinto que eu levei da minha vivência como roteirista o apreço pelo silêncio, mais do que pela palavra, e tento aproveitar esse meu interesse para explorar os abismos que existem na quietude das minhas personagens. Quero mostrar os urros de dor que não se expressam por gritos, mas traduzem a opressão feminina".