Ecos tardios(e necessários) de Terence Davies
Amazon Prime resgata produções aclamadas do cineasta inglês, referência na luta contra a homofobia e na representação da poesia, que ganha retrospectiva na Cinemateca de Lisboa
Dois títulos recentes da introspectiva (leia-se também "requintada") filmografia do inglês Terence Davies (1945-2023) - "Amor Profundo", de 2011, e "A Canção do Pôr do Sol", de 2015 - hoje batem ponto na grade da plataforma Amazon Prime, de modo a manter viva na seara do streaming uma estética particularíssima, que fez da quietude uma forma de devassar segredos e dilemas existenciais. No exterior, também se percebe um empenho de instituições voltadas para a memória do audiovisual em redescobrir a obra de um realizador admirado, mas pouco visto.
É o caso da retrospectiva "O Cantor da Memória", que hoje mobiliza a Cinemateca Portuguesa, em Lisboa. Lá estão a totalidade dos curtas e longas rodados por ele, a partir de sua estreia, em 1976 (foram 14 produções ao todo), incluindo "Benção" ("Benediction"), que rendeu a ele o prêmio de Melhor Roteiro no Festival de San Sebastián, em 2021.
"Falo da paixão, em contextos de conflito, sem nunca me render à amargura", disse Davies ao Correio da Manhã, em entrevista em San Sebastián.
Em tudo que rodou, com destaque para "Vozes Distantes" (Ganhador do Leopardo de Ouro de Locarno e do Prêmio da Crítica de Cannes, em 1988), Davies flertou apaixonadamente com o Tempo, buscando nele brechas para retratar a homoafetividade. Esforçava-se para discutir as lutas contra o preconceito. "Saí do armário tarde, ou no mínimo, depois do que eu desejava", disse, em entrevista na Espanha.
Numa busca sagaz contra a intolerância, numa mistura de resiliência, lirismo e equidades, o cineasta, nascido em Liverpool, passou algumas vezes por reflexões e biografias ligadas à poesia, como "Além das Palavras" (2016), sobre as estrofes de Emily Dickinson (1831-1886). Em "Bênção", volta a buscar a força trágicas de poetas ao propor um balanço da lírica de tom controverso do também britânico Siegfried Loraine Sassoon (1886 —1967). "Sempre observei a vida de Sassoon com o encanto de alguém que teve conflitos de se aceitar, não apenas no seu querer, mas na sua relação com o Divino, mas que nunca deixou de fazer da guerra sua inimiga, seu alvo", disse o diretor.
Em "Benção", a suntuosidade da fotografia de Nicola Daley, uma artesã da luz, capta a dimensão ultrarromântica do mundo de Sassoon e sua alma. "Ao me debruçar sobre arquivos cinematográficos da I Guerra, com cenas de trincheiras na Europa, titubeei, por acreditar, por um momento, que jamais captaria aquele horror. Mas foquei em outro aspecto: nas emoções", disse Davies.
Dois poemas bastam para traduzir, em verbetes, a complexa figura interpretada (com muita delicadeza) pelo ator Jack Lowden no finíssimo drama de Davies. Autor de livros aclamados como "Suicide in the Trenches" e "Memoirs of a Fox-Hunting Man", Sassoon escreveu: "Que falta faz? — teres perdido as pernas? Todos te irão tratar com simpatia E não deves mostrar que te angustia. Sentir que os outros correm disputando Seus lugares à mesa das tabernas. Que falta faz? — teres perdido a vista?… Aos cegos há trabalho assegurado E todos vão tratar-te com cuidado. Quando virem teu rosto que relembra Voltado para a luz que não avista. Que Falta faz? — teres sonhado em vão?… Podes beber: esquece e alegra um pouco; Ninguém há de pensar que estejas louco. Pois sabem que lutaste pela pátria E por isso jamais te afligirão." A tradução acima, encontrada na web, é de Ivo Barroso. Sassoon brilha ainda em: "Quem quer palavras no bosque de outono Onde a cor termina? Ali, velhas histórias e glórias contadas — O vento as elimina. Estreita-se a razão no vale dos túmulos. Que contam o esforço do homem. Ali as fábulas do tempo são a luz sumindo. Sobre rostos que somem." A tradução desse último poema é de Jorge Wanderley. "Sassoon hoje desperta interesse pela maneira como usou a poesia como um instrumento contra o belicismo", diz Davies.
O site da Cinemateca lisboeta traz um estudo profundo de seus movimentos: "O cinema de Terence Davies é composto na total elegância minimalista, nos lânguidos movimentos de câmara, na estase dos olhares, na contemplação das paisagens e na pujança de uma narração esparsa e fragmentária. A isso, junta-se uma dedicação aos atores e ao trabalho em torno da escrita e desenvolvimento de personagens (não esqueçamos que Davies quis ser ator e dirigiu peças de teatro radiofónico), que se revela na sutileza dos seus protagonistas, atravessados por dilemas surdos, melancolias do olhar, dores inomináveis e vontades indizíveis. A isto junta-se o trabalho sistemático em torno da autoficção, numa primeira fase, e em torno dos pressupostos da adaptação literária (que Davies trabalha com renovado fulgor)".