Veneza nas garras do Coringa, mas de flerte com o Brasil

Disputa pelo Leão de Ouro, que termina sábado, pode consagrar a Arlequina de Lady Gaga, mas não deve deixar de lado a forte repercussão de 'Ainda Estou Aqui', de Walter Salles

Por Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Coringa - Delírio a Dois

Batman pode até ficar desconfortável, mas o Coringa tem tudo para aprontar outra das suas e mudar o placar da disputa oficial do Festival de Veneza em prol dos candidatos a blockbusters inspirados em HQs. A julgar pelo fervo na 81ª edição do evento, o novo filme do inimigo n° 1 do Homem Morcego pode conseguir um prêmio - tudo indica que a Copa Volpi de Melhor Atriz - para Lady Gaga. Ela brilha no experimento musical "Joker: Folie a Deux" ("Delírio a Dois" aqui).

Ganhando ou não por lá, a continuação do fenômeno de bilheteria que celebrizou Joaquin Phoenix sob a maquiagem do Palhaço do Crime já fez sua fama na terra das gôndolas, cravejando-se de elogios, afoita para brigar por bilheterias tão fartas quanto a do longa-metragem original. Se ela sai premiada ou não da Itália, a indústria audiovisual só saberá neste sábado (7), quando o evento chega ao fim.

Foi confiado ao novo documentário do chinês Wang Bing, chamado "Youth: Homecoming", a tarefa de dar um fecho de honra à peleja pelo Leão de Ouro, que dá o ponto final em sua maratona competitiva nesta sexta, ansioso por conhecer as deliberações do júri presidido pela atriz francesa Isabelle Huppert. O diretor pernambucano Kleber Mendonça Filho ("Bacurau") integra o rol de votantes que se deleitaram com novos trabalhos de medalhões (Gianni Amelio, Pedro Almodóvar) e com gestos de invenção de novas estrelas autorais, sobretudo a georgiana Dea Kulumbegashvili (no páreo com "April"). Para o Brasil, o Lido este ano foi um espaço de consagração, dada a forte acolhida a "Não Estou Aqui", de Walter Salles, carregado de favoritismo em múltiplas frentes da competição. Sua estrela, Fernanda Torres, é a mais forte concorrente de Lady Gaga.

Produzido por Rodrigo Teixeira (de "A Vida Invisível" e "O Farol"), "Ainda Estou Aqui" marca a volta de Walter à ficção 12 anos depois do subestimado "On The Road" ("Na Estrada"). Sua trama, baseada em romance biográfico homônimo de Marcelo Rubens Paiva, é ambientada no Rio do início dos anos 1970, quando o país enfrenta o endurecimento da ditadura militar, pós AI-5. No epicentro da dramaturgia há uma família, os Paiva: Rubens (Selton Mello), Eunice (Fernanda Torres), filhas e filhos. Eles vivem na frente da praia, numa casa de portas abertas para os amigos, com música e alegria reinantes. Vivem assim até o dia em que Rubens é levado por agentes do governo à paisana e desaparece. Eunice - cuja busca pela verdade sobre o destino de seu marido se estenderá por décadas - é obrigada a se reinventar e traçar um novo futuro para si, para sua prole e para a luta pela liberdade.

Em 1998, Walter ganhou o Urso de Ouro na Berlinale, na capital alemã, por "Central do Brasil", que o levou a disputar o Oscar. Tinha Fernanda Montenegro a seu lado. Ela volta a escudá-lo em "Ainda Estou Aqui", vivendo Eunice em idade mais madura. É possível que o cineasta saia de Veneza agraciado com algum troféu, partindo de lá para dois outros festivais de peso: o TIFF, em Toronto, e San Sebastián, no norte da Espanha. Em ambos pode ser contemplado por votações de júri popular.

Almodóvar fez barulho em Veneza com "The Room Next Door", ao estrear na direção de longas de língua inglesa com Tilda Swinton e Julianne Moore. Há especulações de que ele vença na categoria de Melhor Direção com essa narrativa sobre amigas que se reencontram num cenário de eutanásia. Fala-se muito também da atuação de Daniel Craig, em "Queer", de Luca Guadagnino, em meio às previsões para a Copa Volpi de Melhor Ator. O mais recente 007 se debruça sobre delírios sexuais na Cidade do México recriada à luz da prosa do escritor William S. Burroughs (1914-1997). Também se comenta muito (bem) da dobradinha de Adrien Brody e Guy Pearce em "The Brutalist", de Brady Corbet, considerado por parte considerável da crítica internacional o mais potente dos concorrentes ao Leão de 2024. Em sua trama, o arquiteto visionário László Toth (Brody) e sua esposa Erzsébet (Felicity Jones) fogem da Europa do pós-guerra em 1947 para reconstruir seu legado nos EUA, onde testemunham o nascimento da América moderna. Lá, suas vidas são mudadas para sempre por um cliente misterioso (Pearce).

Fora da briga principal por láureas, o cinema brasileiro teve seu quinhão de destaque sob os holofotes de Veneza com "Manas", de Marianna Brennand, e "Apocalipse no Trópicos", de Petra Costa. Ambos estarão na seleção oficial do Festival do Rio (3 a 13 de outubro).

Assim que o Veneza chegar ao fim "Coringa: Delírio a Dois" vai surfar nas comemorações dos 85 anos de Batman e buscar seu espaço em circuito comercial, a partir de 4 de outubro. Lady Gaga assume o papel da Dra. Harley Quinzel, a Arlequina, outrora encarnada por Margot Robbie. Vale lembrar que, há quatro anos, Joaquin Phoenix ganhou o Oscar por sua atuação como o psicótico personagem lançado em 25 de abril de 1940 por Jerry Robinson, em triangulação com Bob Kane e Bill Finger. Aliás, o primeiro "Coringa" conquistou o Leão de Ouro, de um júri presidido por Lucrecia Martel. Orçado em US$ 55 milhões, o longa de 2019 - hoje na grade da plataforma MAX, ex-HBO - faturou US$ 1 bilhão e 78 milhões mundo adentro. Espera-se o mesmo dessa parte dois, centrada na paixão de Harley por Arthur Fleck (Phoenix) e seu desejo de enlouquecer tanto quanto ele.