O olé de Albert Serra
Badalado pela crítica, o diretor catalão conquista a Concha de Ouro com 'Tardes de Soledad', um documentário ensaístico que destroça o machismo e a violência das touradas
Por Rodrigo Fonseca
Especial para o Correio da Manhã
Encarado desde a sua primeira exibição pública, na segunda-feira passada, no 72º Festival de San Sebastián, como um gesto de ousadia e um convite à provocação, o ensaio documental "Tardes de Soledad", do catalão Albert Serra, fez jus à controvérsia que despertou ao receber a Concha de Ouro de 2024, por sua excelência de linguagem. Venceu no último sábado a acirradíssima disputa da maratona cinéfila do País Basco com um objeto de estudo dos mais indigestos para os novos tempos: a tradição da tourada. Ao seguir o dia a dia de um toureiro peruano visto como celebridade em seu ofício, Andrés Roca Rey, o realizador de cults como "A Morte de Luís XIV" (2016) combate o machismo e também a naturalização da violência contra os animais inerentes àquela tradição ibérica. Sagrou-se ganhador de um evento que falou de finitudes (de corpos idosos, de velhos costumes) do começo a fim.
"Como meu fotógrafo, Artur Tort, também é um montador, tive a chance de explorar as imagens que rodamos com respeito à solidão das pessoas que estão nas arenas de touros, mas sem romancear aquele costume", disse Serra em resposta ao Correio da Manhã em sua coletiva em Donostia, o nome de San Sebastián em basco.
Promovido à nata das vozes autorais do Velho Mundo desde que seu "Pacifiction" foi eleito o "melhor filme de 2022" pela revista "Cahiers du Cinéma", Serra nunca havia feito um longa de não ficção antes. Sem fazer juízos de valor, esse artesão da imagem registra uma série de "combates" travados por Roca Rey. Em planos longos, com muitos closes, o diretor desconstrói o simbolismo de virilidade que cerca os toureiros, captando frases de fãs como "seus colhões são maiores do que essa praça", que, ouvidas no contexto estético do longa, ganham tom irônico. "Tenho formas de pensar a linguagem que passam por uma herança de meu país nas telas", disse Serra ao Correio, antes de atuar como jurado da última Berlinale, na Alemanha, em fevereiro. "Sou, sim, um cineasta espanhol, pela minha gênese pessoal, mas o meu cinema não está preso a paradigmas nacionais, nascendo de uma troca com outras pátrias, no desejo de expressar o mundo a partir de uma inquietação formal que não se defina meramente pela palavra, ainda que esta, quando aparece em cena, tem relevância, um sentido, um efeito".
O radicalismo de Serra encantou o júri presidido pela realizadora basca Jaione Camborda, agraciada com a Concha de 2023 por "O Corno do Centeio". Seu time de juradas/os reuniu a jornalista e escritora argentina Leila Guerriero, o ator e diretor americano Fran Kranz, a produtora francesa Carole Scotta e os cineastas Christos Nikou (da Grécia) e Ulrich Seidl (da Áustria). Essa turma coroou com um prêmio especial o elenco do drama americano "The Last Showgirl", de Gia Coppola, neta de Francis Ford. Pamela Anderson estrela a produção, ao lado de Jamie Lee Curtis e Dave Bautista, vivendo uma dançarina de um espetáculo de nudez em Las Vegas.
Na escolha da melhor direção, Jaione & Cia. deram empate entre a portuguesa radicada na Escócia Laura Carreira (pelo drama social sobre imigração "On Falling") e o espanhol Pedro Martín-Calero (pelo terror "El Llanto"). O resultado ilustra a diversidade da premiação, que esnobou veteranos como Costa-Gavras e Mike Leigh, muito badalados em suas projeções. O título mais premiado acabou sendo "Quando Vient L'Automne", do campeão de bilheteria parisiense François Ozon. Ele recebeu o troféu de melhor roteiro e seu ator Pierre Lottin, o troféu de melhor coadjuvante. A láurea de melhor interpretação protagonista ficou com a espanhola Patricia López Arnaiz pelo tocante "Los Destellos", sobre uma mãe angustiada com a doença terminal de seu ex-marido.
Terminado San Sebastián, começa (nesta quinta) o Festival do Rio, com a projeção do musical "Emilia Pérez", de Jacques Audiard.
Lista de prêmios
Concha de Ouro: "Tardes de Soledad", de Albert Serra
Prêmio Especial do Júri: para as atrizes e os atores de "The Last Showgirl"
Realização: Laura Carrera ("On Falling") e Pedro Martín-Calero ("El Llanto")
Interpretação (protagonista): Patricia López Arnaiz ("Los Destellos")
Interpretação (coadjuvante): Pierre Lottin ("Quand Vient L'Automne")
Argumento: François Ozon e Philippe Piazzo por "Quand Vient L'Automne"
Fotografia: Songri Piao, por "Bound In Heaven"
Prêmio Horizontes Latinos: "El Jockey", de Luis Ortega (Argentina)