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Senegal em tempo de fábula

Por Rodrigo Fonseca

Especial para o Correio da Manhã

Único representante do continente africano na briga pela Palma de Ouro de 2023, exibido ainda no prestigiado Festival de Roterdã, "Banel e Adama" está encerrando, no Brasil, um ciclo que se arrasta por um ano e meio de périplo pelas telas do mundo todo a levar uma visão particular do Senegal, carregada de tintas mágicas. Sua diretora, Ramata-Toulaye Sy, hoje se agarra com orgulho às vagas que vem conquistando nas maiores maratonas audiovisuais do Velho Mundo. Em maio do ano passado, na Croisette, a revista "Screen" atribuiu elogios a ela na resenha escrita por Wendy Ide. Segundo a resenhista, o filme é uma "fábula atmosférica" e "cresce na sua segunda metade e será de interesse para os distribuidores de filmes independentes". Quem ainda não o incluiu em sua lista de achados das narrativas independentes egressas da África deve fazê-lo pra ontem. Para as plateias nacionais, a chance de aplaudir essa joia na telona começa a partir desta quinta, data de sua estreia comercial por aqui.

"Não quero um cartão postal do Senegal, mas, sim, imagens não saturadas, apoiadas em referências de Van Gogh e Munch. Tentei dialogar com a literatura sem me deixar embevecer por lirismos da prosa", disse Ramata-Toulaye ao Correio da Manhã, em Cannes.

O que existe de ousadia nessa love story no Senegal (terra dos ancestrais da diretora, que nasceu há 37 anos em Paris e lá estudou) é seu flerte com o realismo mágico. Há até uma revoada de aves que inundam o céu com o aviso funesto de uma tragédia. Khady Mane é Banel, jovem que se casa com Adama (Mamadou Diallo) em entender os interditos culturais de seu povo ligados ao benquerer. A percepção de que seu romance incomoda, ela gravita por veredas do risco.

"É da literatura que o realismo de tons fantásticos, cercado de magia, brotou para dentro da minha narrativa", explica a cineasta. "Ele passa por Faulkner, entre muitos autores mais ou menos alinhados com essa perspectiva mágica. Eu busquei ir além da comédia romântica clássica, com a qual o cinema nos marcou, explorando potências que nos tiram do real, pois não quero fazer um manifesto, um filme social. É a história de um amor, ainda que fantasmas do escravismo contra o povo negro apareçam em algum lugar ali. Ainda sobre referências, a Hkady viu 'Camille Claudel', o filme, para construir sua personagem de modo a tornar crível que, hoje, ainda se enlouquece de amor. Existe uma dimensão de tragédia no filme, mas também existe a banalidade da vida, que não pode ser descartada".

Pilares autorais do cinema produzido por países africanos - como Souleymane Cissé, do Mali - estão no radar de Ramata-Toulaye, mas não engessam sua dinâmica criativa. "Respeito a obra dele, assim como admiro outros filmes de colegas africanos. Mas eu, que nasci na França, não cresci com essas narrativas da África. Eu só fui descobri-las mais tarde", disse a cineasta. "São filmes que demoram a circular. Sou vista aqui como alguém recém-chegada. Mas eu tenho um currículo. Não sou uma desconhecida. Estudei cinema. Estou aqui. Veja o que tenho a dizer com meus filmes".