Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Redentor, olhai por nós... das telas

Festival do Rio | Foto: Divulgação

Inaugurado em edições passadas por filmes de Sofia Coppola ("Encontros e Desencontros"), Daniel Filho ("A Dona da História"), Brian De Palma ("Dália Negra"), Fernando Trueba (em duo com Javier Mariscal, com "Atiraram no Pianista"), Denis Villeneuve ("A Chegada") e o saudoso Breno Silveira ("Gonzaga, De Pai Para Filho"), o Festival do Rio abre sua seleção de 2024 esta noite nos embalos de Jacques Audiard e seu premiado "Emilia Pérez".

Coqueluche em Cannes, de onde saiu com o Prêmio do Júri e uma láurea coletiva para suas estrelas (Karla Sofía Gascón, Zoe Saldana, Selena Gomez e Adriana Paz), o musical será projetado nesta quinta-feira (3) no Odeon, em sessão para convidadas/os e terá um repeteco lá mesmo, nesta sexta, às 21h45, para pagantes. Karla só faz arrancar elogios onde quer que esse filmaço seja exibido, como aconteceu há dez dias no Festival San Sebastián, na Espanha, sua pátria natal.

Tudo indica que ela pode ser a primeira mulher trans a conquistar um Oscar de Melhor Interpretação. Seu desempenho é estonteante em duas fases de um mesmo personagem: na abertura, ela vive Manitas, chefão de um cartel mexicano que resolve transicionar e volta a seu país sob a identidade de Emilia, provando de novas descobertas inerentes à sua mudança de identidade.

Já há quem diga que o filme que mais vai mobilizar a 26ª maratona cinéfila carioca será "O Quarto Ao Lado" ("The Room Next Door"), que rendeu o Leão de Ouro ao espanhol Pedro Almodóvar. Ele abriu o Festival três vezes, com "Fale Com Ela" (2002), "A Pele Que Habito" (2011) e "Madres Paralelas" (2021). Regressa agora com uma trama falada em inglês na qual a escritora Ingrid (Julianne Moore, monumental) tem que ajudar a amiga jornalista Martha (Tilda Swinton) num processo de eutanásia. Tem exibição dele na sexta, às 19h30, no Odeon; no dia 10, às 16h30, no Estação NET Botafogo; e no dia 12, às 19h30, no Estação NET Gávea 5.

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Títulos garimpados para você

Todas as Estradas de Terra Têm Gosto de Sal | Foto: Divulgação

O número de pérolas a serem garimpadas nesta edição do Festival do Rio é grande. Mesmo! Para ajudar no garimpo, o Correio da Manhã elenca aqui seu rol de apostas imperdíveis.

TESOURO ("Treasure"), de Julia von Heinz (Alemanha/EUA): Eleito "o filme fofo" da última Berlinale, esta dramédia põe a atriz e roteirista de "Girls", Lena Dunham, ao lado de um mito queer da cultura pop: Stephen Fry. Eles vivem filha e pai num road movie que se passa em 1991, data na qual a jornalista Ruth (Lena) leva seu pai, o imigrante judeu polonês Edek (Fry, sublime em cena), a um passeio por sua terra natal. Mas ela vai incluir campos de concentração no pacote, o que leva Edek, a lembrar da dor vivida por seu povo na mão dos nazistas. O tema é bem áspero. O longa, não.

TODAS AS ESTRADAS DE TERRA TÊM GOSTO DE SAL ("All Dirt Roads Taste of Salt"), de Raven Jackson (EUA): Um austero estudo sobre a vida de duas mulheres, numa relação de maternidade, numa comunidade rural do Mississippi. Sua diretora é uma poeta, conhecida no universo literário pelo livro "little violences" e respeitada no cinema pelo curta-metragem "Nettles" (2018). Sua narrativa é metonímica, concentrando cada enquadramento em detalhes do que vê, vindo e voltando no tempo. O destaque de seu elenco é a atriz e cantora anglo-ugandense Sheila Atim, sobretudo na comovente sequência na qual segura uma menina no colo, num gesto maternal de acalanto brando, onde implode em angústias existenciais.

MALÊS, de Antonio Pitanga (Brasil): Quase 45 anos depois de seu primeiro exercício como realizador ("Na Boca do Mundo"), um dos atores essenciais do Cinema Novo volta à direção filmando um enredo de Manuela Dias, que recria a Bahia do século XIX, em meados de 1830. Na ocasião, uma rebelião começou a ser arquitetada por africanos muçulmanos, chamados de malês. A revolta se passa no final do Ramadã, mês do calendário islâmico em que o jejum é uma forma de celebrar Alá. Após o fracasso da revolta, os manifestantes foram duramente punidos e a repressão contra as populações pretas no Brasil aumentou.

CANINA ("Nightbitch"), de Marielle Heller (EUA): Mais um convite ao Oscar para Amy Adams, de volta às telas numa atuação feroz. Ela interrompe uma jovem que abandona sua carreira para ser uma mãe totalmente dedicada ao lar, mas logo sua nova vida doméstica toma um rumo surreal, nas raias da alucinação.

AMARELA, de André Hayato Saito (Brasil): Eis o curta que representou o Brasil na competição de Cannes. Sua trama se passa em São Paulo, em julho de 1998, no dia da final da Copa do Mundo contra a França. Naquele domingo, Erika Oguihara (a atriz Melissa Uehara), uma adolescente nipo-brasileira que rejeita as tradições de sua família japonesa, está ansiosa para comemorar um título mundial pelo seu país. Em meio a tensão que progride durante a partida, Erika sofre com uma violência que parece invisível e adentra em um mar doloroso de sentimentos

TODO TEMPO QUE TEMOS ("We Live In Time"), de John Crowley (Reino Unido): Um ímã de lágrimas para fazer o Festival do Rio chorar oceanos, este drama de amor da escola David Lean ("Desencanto") conta com um dos mais importantes diretores de teatro da Europa no leme. Crowley narra a luta de um casal apaixonadíssimo, a chef Almut (Florence Pugh, sublime) e o engenheiro de TI Tobias (Andrew Garfield), depois que ela é diagnosticada com um câncer.

UMA BELA VIDA ("Le Dernier Souffle"), de Costa-Gavras (França): Aos 91 anos, o artesão maior do thriller político (vide "Z") assinou o momento mais lírico da corrida aos troféus principais do evento com a saga de um médico (Kad Merad) e um escritor (Denis Podalydés) que colhem relatos de doentes terminais às vésperas de partir. Charlotte Rampling vive uma das pessoas que se encontram a caminho de desencarnar, momento que o artesão franco-grego chama de "futuro".

FILHOS DO MANGUE, de Eliane Caffé (Brasil): Kikito de Melhor Direção em Gramado, este drama foi rodado no Rio Grande do Norte, com roteiro do eterno colaborador de Eliane, o dramaturgo Luís Alberto de Abreu, autor de "Lima Barreto ao Terceiro Dia", que proseia com a literatura de Sérgio Prado, no romance "O Capitão". Na trama, Pedro Chão (Felipe Camargo, em vigorosa atuação) é um homem de mau caráter, individualista e desregrado, que aparece ferido e sem memória em sua comunidade ribeirinha. O povo o acusa de roubo e tenta, em vão, que ele recupere a memória e devolva o dinheiro.

O SOLDADO SEM RASTROS ("The Vanishing Soldier"), de Dani Rosenberg (Israel): Um dos achados de Locarno em 2023 chega ao Brasil só agora. Sua narrativa mostra as consequências de uma traquinagem de fim de adolescência (mas muito perigosa) praticada pelo jovem Schlomi: em meio a um ataque à sua unidade militar, ele foge. Cheio de planos para o futuro, o rapaz presta serviço no Exército para apoiar sua pátria. Contudo, a chance de sumir oferece a ele uma oportunidade de deixar a violência para trás. O problema é que seus colegas de farda e seus oficiais acreditam que ele foi morto pelo inimigo ou foi capturado. Logo, o tal "recruta desaparecido" acaba por se tornar uma figura mítica num contexto onde crescer e lutar são verbos sinônimos.

INFESTAÇÃO ("Vermines"), de Sébastien Vanicek (França): Um thriller de terror na linha de "Aracnofoibia". Em seu enredo o jovem Kaleb, fascinado por animais exóticos, encontra uma aranha venenosa em um bazar e a leva para o seu apartamento no subúrbio de Paris. Quando o animal escapa e se reproduz, o prédio inteiro é transformado numa terrível armadilha de teias. Para evitar o contágio, a polícia isola o local com os moradores dentro e todos terão de lutar pela própria sobrevivência. A montagem é frenética.

MMA - MEU MELHOR AMIGO, de José Alvarenga Jr. (Brasil): Marco Mion rouba a cena em tudo o que faz, na fase de apogeu em que vive desde sua chegada ao "Caldeirão" da Globo. Brilhou até em comercial com Sylvester Stallone. Agora é a hora e a vez de ele virar astro de cinema, num Rocky Balboa nacional, sob a realização do diretor de "Os Normais". Mion vive um lutador profissional que, às vésperas de abandonar os octógonos, descobre ser pai de um menino autista que precisa dele.

LE PROCÈS DU CHIEN, de Laetitia Dosch (França): O enredo mais hilário do Festival de Cannes deste ano, coroado com a Palm Dog. Uma advogada (vivida por Laetitia) precisa defender Cosmos, um cão acusado de morder três pessoas. Se ela perder, seu cliente canino vai padecer na Carrocinha.

TÓXICO ("Akiplesa"), de Saule Bliuvaite (Lituânia): O ganhador do Leopardo de Ouro de Locarno deste ano gravita entre a perplexidade e a sororidade. Abandonada pela mãe, Maria, de 13 anos, é obrigada a viver com a avó numa cidade industrial deprimente. Durante um confronto violento na rua, ela conhece a aspirante a modelo Kristina. Buscando se aproximar dela, Maria se inscreve numa escola misteriosa que prepara meninas para o principal evento da região. A relação ambígua com Kristina e o ambiente intenso, com ares de culto, da instituição empurram Maria para um processo de autodescoberta - e de implosão.

FARUK, de Asli Özge (Turquia): Nas raias da autoficção, este painel de conflitos geracionais em Istambul parte de um exercício de observação, com ares fabulares, feito pela cineasta a partir do dia a dia de seu pai, um nonagenário que esbanja carisma. O dispositivo afetuoso armado por Asli garantiu ao longa a láurea da Crítica, votada pela Federação Internacional de Imprensa Cinematográfica (Fipresci).