Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Costa-Gravas: 'Fazer um filme é uma história de amor'

Costa-Gravas: 'A religião mais poderosa que existe no mundo se chama Dinheiro' | Foto: Divulgação

Signo supremo do thriller político, responsável por uma espetacularização das tramas de tons sociológicos que não lhes entorpecia a lucidez crítica, o grego de cidadania francesa Costa-Gavras hoje faz da experiência sensível da morte o objeto sua nova plenária cinematográfica: "Uma Bela Vida".

Lançado há uma semana na Espanha, na competição pela Concha de Ouro de San Sebastián, o arrebatador filme novo do diretor de "Z" (1969) e "Missing" (Palma de Ouro de 1982) pede passagem ao circuito brasileiro neste sábado, no Festival do Rio. Tem projeção às 14h, no Cinesystem Botafogo, com repeteco na próxima terça, 17h, no Estação Net Gávea.

Aos 91 anos, o artista que desafiou a direita e a esquerda com sucessos como "Estado de Sítio" (1972) e "O Quarto Poder" (1997) visitou a maratona cinéfila carioca em 2002. À época veio cá para exibir "Amém", que relembrava os expurgos nazistas. Defrontou-se com o ocaso do culto a seu nome por parte da crítica local. Os escribas da época pareciam ter esquecido de que, num momento no qual parecia não ser possível fazer cinema revolucionário sem uma forma revolucionária, aquele realizador egresso do Peloponeso oxigenou as cartilhas do suspense a fim de retratar disputas de Poder.

A disputa agora em seu raio de ação é pelo direito a um fim digno para quem se encontra em estado terminal. Baseado em livro do jornalista e ensaísta Régis Debray e do médico Claude Grange, chamado "Le Dernier Soufle" (que é nome do longa-metragem na França), a nova produção de Costa-Gavras dribla retóricas para criar uma dialética sobre o tratamento hospitalar. Há uma dupla de protagonistas: um médico, Augustin Masset (Kad Merad, campeão de bilheteria no Velho Mundo), e um escritor, Fabrice Toussaint (Denis Podalydés). Numa investigação sobre cuidados paliativos, os dois colhem relatos de doentes terminais às vésperas de partir. Charlotte Rampling vive uma das pessoas que se encontram a caminho de desencarnar, momento que o artesão autoral chama de "futuro".

Tem mais sessões de "Uma Bela Vida" no festival, no dia 11h, às 19h, no Cinesystem Botafogo 1, e no dia 13, às 21h15, no Estação NET Botafogo 1. Na conversa a seguir, Costa-Gavras dá ao público do Correio da Manhã todas as razões possíveis para ser assistido com urgência.

Que tipo de pesquisa sobre o sistema de saúde europeu o senhor fez para o filme?

Costa-Gavras: Eu tinha o livro na frente de tudo e visitei o trabalho do Dr. Grange. Ali, eu percebi algo interessante. Temos a percepção de que enfermeiras/os e médicas/os são muito autoritárias/os na sua rotina e muito incisivas/os. Só que no ambiente de Grange, as pessoas sorriem para as/os pacientes, como se elas/es fossem crianças, recebendo atenção a suas demandas. Um dos pontos centrais da escrita de "Le Dernier Souffle" é como as pessoas devem ser tratadas. Cuidadoras/es têm o poder de fazer um doente se sentir em casa, sentir-se bem.

O senhor virou uma lenda, sobretudo no cinema político, por seu estilo nevrálgico de mover a câmera, com uma edição veloz, de cortes rápidos. Esse novo filme, entretanto, é sereno, mais contemplativo. O que mudou?

O roteiro pedia isso e a narrativa que construímos com a câmera é sempre uma resposta ao que a dramaturgia pede.

De que maneira esse pedido reflete a finitude?

A morte hoje me preocupa. Na minha idade, o horizonte do fim se aproxima mais e mais e estou interessado na melhor forma de morrer. Quero estar preparado para morrer com dignidade. Essa é a palavra. O Estado deveria ter a coragem de apoiar quem quer morrer. Em certos países, essa opção é possível. Godard, por exemplo, decidiu morrer (e cometeu suicídio assistido, na Suíça, em 2022).

Esse é um tema tabu que sempre esbarra na religião, assunto que "Uma Bela Vida" trata com respeito, citando em especial as práticas budistas. Como o senhor encara o papel da religião em relação ao fim?

Toda religião, até a dos povos bárbaros, em tempos anteriores da História, diz que o indivíduo não tem o direito de decidir como morrer. Muita gente acredita em Paraíso e eu respeito as crenças alheias. Não quis que o filme fizesse uma crítica aos ideais religiosos, mas quis incorporar outras perspectivas, como a dimensão cultural africana e a visão dos ciganos.

Seu filme foi lançado num dos maiores festivais do mundo, o de San Sebastián, na disputa oficial, e parte agora para o mundo. O senhor já falou no passado que "um roteiro não filmado é como uma história de amor não realizada". Que experiência afetiva essa nova empreitada lhe traz agora, nesse momento de sua nonagenária vida?

Fazer um filme é uma história de amor e esse amor precisa durar até o fim, da feitura ao lançamento. Há que se ter uma relação de afeto e de carinho com o trabalho.