Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Jogos de armar um país

'Kasa Branca', de Luciano Vidigal, narra a cuidadosa relação de um jovem com sua avô com Alzheimer | Foto: Divulgação

Momento mais bonito do que a cena de "Kasa Branca" na qual o jovem Dé (Big Jaum) leva sua avó com Alzheimer, Dona Almerinda (Teca Pereira), para ver o trem passar, do alto, o Festival do Rio 2024 não viu igual, até agora, em mostra alguma. Grande descoberta da ala nacional do evento, o primeiro longa-metragem solo de ficção de Luciano Vidigal ("5xFavela, Agora Por Nós Mesmos") vai ao coração da Chatuba para buscar a fauna de personagens mais rica que a competição oficial da Première Brasil deste ano conferiu de sexta para cá.

A vertente histórica do naturalismo, que vem lá da prosa literária, com "O Cortiço", é usada pelo cineasta numa perspectiva solidária (e não catastrofista) para ilustrar a vida de três jovens amigos num cotidiano de reeducação afetiva. Além de Dé, Adrianim (Diego Francisco) e Martins (Ramon Francisco, hilário) vivem os perrengues de uma cidade que isolou os bairros distantes do mar, padecendo de um serviço de saúde deficitário na rede hospitalar pública.

Apesar das várias dificuldades, aquela galera não esmorece, como demonstra a tocante cena de uma dona de academia de subúrbio (Roberta Rodrigues) a acalantar o filho, depois de ele encarar uma desilusão amorosa. É uma narrativa de ruptura com os lugares comuns da representação da periferia, como fez, um ano atrás, "A Festa de Leo". Vidigal firma sua eficácia narrativa na exposição dos desamparos brasileiros. 

 

Novos bons exemplares de autoralidade brasileira

Os Enforcados | Foto: Divulgação

Outra recém-chegada aos longas de ficção, egressa de uma estrada documental de respeito, Marianna Brennand desmascara a microfísica de um poder opressivo que cerca o abuso de menores nas comunidades ribeirinhas da Região Norte em "Manas", um retrato áspero da violência contra a mulher em locais onde a fé é castradora e o estado, inadimplente.

Dira Paes entra em cena como um anjo de justiça (e de sororidade) na vida de uma menina de 13 anos que sofre com o abuso do pai. A produção saiu do Festival de Veneza laureada com o prêmio máximo de sua Jornada de Autoras/es. Sua direção é de uma destreza impecável.

Das grandes atuações vistas aqui, no concurso principal, a colossal composição de Leandra Leal na criação de uma Lady Macbeth do Jogo do Bicho, em "Os Enforcados", gera já apostas para um possível troféu Redentor de interpretação. Sua personagem, Regina, gravita entra a cobiça e a loucura ao instigar o marido (Irandhir Santos) a eliminar o tio bicheiro (Stepan Nercessian) no thriller do diretor de "Lobo Atrás da Porta" (2013), Fernando Coimbra.

Entre os curtas em competição, o mais arrebatador dos títulos já exibidos é "Stella do Patrocínio e a Gênese da Poesia", de Milena Manfredini, que será exibido pelo Odeon hoje, às 10h30. Numa mistura de ensaio, .doc e ficção, a diretora relembra os feitos da poeta que foi detida em instituição psiquiátrica (Colônia Juliano Moreira) sob a alegação de esquizofrenia e lá desenvolveu o "falatório" como arte.

Segue o baile da Première hoje com "Retrato de um Certo Oriente", madura (e instigante) imersão do pernambucano Marcelo Gomes na imigração libanesa para a América do Sul.