Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Um Irã que resiste

'The Seed of the Sacred Fig' (foto) e 'Meu Bolo Favorito', duas sensações iranianas em cartaz no Festival do Rio, sofrem vetos e censura em seu país de origem | Foto: Divulgação

Responsável pela popularização de Abbas Kiarostami (1940-2016), Jafar Panahi e todo um time de vozes autorais do Irã em suas duas décadas de meia de atividade, o Festival do Rio cumpre a tradição de celebrar as lutas audiovisuais daquela pátria contra a opressão de seus governos ao exibir o que parte considerável da crítica considera o filme do ano: "The Seed of the Sacred Fig".

Cannes delirou com esse estudo sobre a metástase do fundamentalismo, assim como os festivais de Locarno (na Suíça) e San Sebastián (na Espanha). A primeira projeção dele no evento carioca é nesta terça-feiura (8), às 21h, no Estação NET Botafogo 1. Tem mais uma no sábado, às 16h, no Cinesystem Botafogo.

Fala-se dele para o Oscar 2025, mas sob uma perspectiva inusitada. Ao escolher anualmente um longa-metragem a ser submetido a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, almejando uma vaga na disputa do Oscar, as instituições culturais do Irã precisam passar por um crivo (leia-se "censura") do governo, que reprova (em geral) tramas avessas às imposturas políticas daquela nação. O representante deles desta vez é "In the Arms of the Tree", de Babak Khajehpasha, que teve pequeníssima repercussão fora de suas fronteiras. O que fez "The Seed of The Sacred Fig" ser esnobado para essa função estratégica é a pressão de órgão governamentais daquele país contra seu diretor, Mohammad Rasoulof. Ele tem viajado pelo mundo sempre cercado de tensão, pois se encontra sob condenação estatal em sua terra natal, vivendo refugiado na Alemanha. Saiu do Festival de Cannes com o Prêmio Especial do Júri, o Prêmio do Júri Ecumênico e o Prêmio da Crítica.

Diante da boa recepção, os alemães (que coproduziram o roteiro de Rasoulof) não tiveram dúvida e optaram por ele para representar o audiovisual germânico na corrida aos Oscars. Em sua trama, um juiz entra em paranoia ao se sentir perseguido e começa a se voltar de forma violenta contra suas filhas e sua mulher. "Venho de uma cultura submetida à tirania, pois o Estado Islâmico é capaz de tudo", disse Rasoulof em Cannes. "Por que meu governo tem tanto medo das histórias que contamos?".

Ao 52 anos, o realizador, egresso de Xiraz, precisou fugir de sua casa (e sua nação) para conseguir expressar sua voz autoral pelo mundo, tendo seu passaporte confiscado pelas autoridades do Irã, que o considera uma ameaça à integridade nacional.

"Dei instruções à equipe para que terminasse o filme caso eu fosse preso. Quando a sentença de que eu seria detido saiu, fui para casa e me despedi das minhas plantas, depois dei um jeito de sair", explicou o diretor, que por já ter sido trancafiado antes conhecia meios não tão legais de escapar, por rotas alternativas que o levaram à Alemanha. "Este é um filme sobre doutrinação, sobre o que acontece quando você deixa alguém, ou alguma ideologia tomar conta de sua mente", disse o realizador, que ganhou o Urso de Ouro de 2020 com "Não Há Mal Algum". "Não tenho medo da intimidação".

Há uma outra pérola iraniana neste Festival do Rio que passa por perrengue similar: "Meu Bolo Favorito" ("My Favourite Cake"), que brilhou na disputa pelo Urso de Ouro de 2024. Saiu da Berlinale com o Prêmio da Crítica e o do Júri Ecumênico, parecido com o que se deu com "The Seed of the Sacred Fig". Tem sessão dele amanhã, às 21h15, no Estação NET Botagogo 1, e na quinta, às 18h40, no Reserva Cultural. Existe um triste contexto político por trás dessa trama outonal envolvendo dois septuagenários: uma viúva e um taxista. Seus diretores, a dupla Maryam Moghaddam e Behtash Sanaeeha (de "O Perdão"), foi proibida de viajar para a capital alemã por um veto das autoridades de seu país, o Irã. Eles são acusados de desafiar os códigos morais iranianos em relação ao uso de hijab, uma espécie de touca (com aspecto de véu), que cobre a cabeça feminina de forma bem justa. A interdição da presença de Maryam e Behtash foi recebida pela direção do Festival de Berlim como um atentado à liberdade de expressão e um retrocesso em relação ao tratamento das mulheres.

"Decidimos ultrapassar as restrições legais e pintar um retrato real das mulheres iranianas", disseram os realizadores numa carta lida diante da imprensa pela atriz e jornalista Lily Farhadpour, que protagoniza "My Favourite Cake" ao lado de Esmaeel Mehrabi.

Ela vive Mahin, que perdeu o marido há cerca de três décadas, criou (bem) a filha e hoje vive sozinha, aos 70 anos. Na mesma idade, o motorista Faramarz (papel de Esmaeel) também lida com a solidão em seu dia a dia. Porém, durante uma noite, num encontro casual, eles vão provar do gostinho do benquerer.

Tal sinopse pode sugerir apenas doçura. No entanto, "My Favourite Cake" sabe ser áspero ao expor a brutalidade policial na repressão de jovens estudantes que ousam sair de casa com os cabelos à mostra.