Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

CRÍTICA FILME - O MANÍACO DO PARQUE: Aconteceu, virou manchete

Em feroz atuação, Silvero Pereira vive o assassino que assombrou o Brasil nos anos 1990 | Foto: Divulgação

É contra a máxima de Luís Fernando Verissimo - "Às vezes, a única coisa verdadeira num jornal é a data" - que incorre as ações de Elena, a protagonista de "Maníaco do Parque", um thriller nacional que prometia ser um "filme de monstro", mas acerta muito mais como "filme sobre jornalismo".

Exibido no encerramento do Festival do Rio, como degustação para o lançamento na plataforma Amazon Prime, nesta sexta-feira, o longa-metragem aposta na tensão ao travar diálogo com a lição de Gabriel García Márquez (1927-2014): "A ética deve acompanhar sempre a reportagem, como o zumbido acompanha o besouro".

O que mais eletrifica o roteiro escrito por L. G. Bayão, a partir de pesquisa da jornalista investigativa Thaís Nunes sobre fatos reais, é o exercício da notícia como prática questionadora de juízos morais. Juízos esses que tornaram absolutos valores relativos e relativizaram o quão absoluto é o valor da vida.

Maurício Eça (do vigoroso "Apneia") é um cineasta que aposta, muitas vezes, no perspectivismo, vide o díptico "A Menina Que Matou Os Pais"/"O Menino Que Matou Meus Pais" (2021), demarcando para si a linha autoral de um olhar que põe certezas em xeque. Cada imagem criada por ele nos leva a um precipício reflexivo, como comprova sua deliciosa chanchada marxista "Vai Ter Troco", de 2023. Nem sempre o que seus personagens fazem correspondem às crenças que eles parecem seguir, uma vez que seu cinema supõe desafiar aparências, explorando desejos que a palavra não dá conta.

Aportar essa inquietação estética ao pragmatismo do ofício de repórter - uma artesania pautada na arte da escuta, mas assombrada por manuais de redação e vaidades - é um convite a uma discussão sobre o que está por trás de um lead (o que, quem, quando, onde e por que): o bem-estar da sociedade ou o aumento das vendas de jornais. No caso de Elena, existe um outro (e urgente) componente: o desvelamento de hipocrisias sexistas.

Condenado a dois séculos e meio de prisão (numa pena que, legalmente, pode se extinguir já, já), o paulista Francisco de Assis Pereira, hoje com 56 anos, foi capturado após uma série de (11) assassinatos e uma leva de (23) ataques a mulheres, entrando para a História como um dos maiores feminicidas do país. Eça reconstitui seus crimes escalando um ator em estado de graça, Silvero Pereira, para o papel principal. Sua atuação é dialética (como o filme): ele sabe ser feroz e vulnerável, destrutivo e linear. O eixo central de sua composição na escrita de L.G. Bayão é a busca por visibilidade.

A besta-fera que Francisco é age em nome da consagração, de ter seus assassínios publicados nas páginas do jornal. Lembra-se (de imediato) do desempenho de Michael Rooker em "Henry: Retrato de um Assassino" (1986), cult de John McNaughton no qual um serial killer se deleitava na impunidade para buscar na morte alheia a sublimação de seus impasses. Como ele, o Maníaco do Parque de Silvero também se deleita com as loas e luta para ter um controle (pleno) das situações em que se envolve.

Numa genealogia do suspense feito em terras brasileiras, a figura delineada na dramaturgia de Bayão e Eça evoca o ferrabrás vivido (na TV) por Matheus Nachtergaele em "Lira Paulistana" (episódio do "Brava Gente" de 2001) e o universo febril criado por Claudio Cunha no filmaço "Snuff, Vítimas do Prazer" (1977).

É a imagem do predador disfarçado de servo feliz. Francisco (Silvero) é o motoboy produtivo e disponível que encobre sua bestialidade com a cabeça baixa da dinâmica capitalista numa São Paulo onde ninguém tem tempo de olhar (e de se importar com) o próximo. Ninguém menos Elena, figura que a atriz Giovanna Grigio (de "Perdida") sabe esculpir com muitos declives, falésias e inquietudes, numa interpretação madura, (auto)crítica que - nos moldes da cartilha de Eça - se contradiz muitas vezes, expressando o sentimento de desconforto de sua personagem diante de uma dinâmica profissional engessada.

Da mesma forma como fez no obrigatório "Motorrad" (exibido no Festival de Toronto de 2017), Bayão escreve as sequências violentas necessárias a uma trama horrorífica explorando a fúria das criaturas (no caso, Francisco) sem pornografia gore: os ataques estão em cena, num ritmo taquicárdico, mas são conduzidos sem excessos, numa linha precisa da direção de Eça. Ou seja, vemos Francisco atacar e matar, mas a câmera se concentra mais do ódio em seu olho do que no sangue. Por outro lado, como fez no recente "Aumenta Que É Rock'n'Roll", também ligado ao jornalismo, o scriptwriter L. G. (de notável domínio do pop) abre mão das sutilezas e deixa a palavra fluir ao desenhar a figura de Elena, apoiado no talento de Giovanna. É no verbo que ela combate Francisco. Por isso, "Maníaco do Parque" - na fina edição de Gustavo Giani - dá pleno valor ao fluxo da imagem nas situações de ação, mas não teme a onipresença do diálogo em cena, valorizando as discussões de sua heroína com seu editor-chefe (Marco Pigossi, numa atuação rascante, de sutil ironia) e com seu colega veterano (o sempre preciso Bruno Garcia, numa esgrima com o escárnio).

Esses dois parceiros de redação são essenciais para dar a "O Maníaco do Parque" o tom de "O Silêncio dos Inocentes" (1991) que ele tem. No cult com Jodie Foster e Anthony Hopkins, a agente Starling só encarava o canibal Lecter de frente pelo vetor impositivo de seu superior, que superestimava sua potencial fragilidade, num senso machista. O editor interpretado por Pigossi faz o mesmo quando pede a Elena que explique, numa investigação jornalística, o que uma mulher atropelada pelo marido fez para merecer a (má) sorte que teve. É a fagulha que acende nela o desejo de questionar a invisibilidade da voz feminina numa imprensa arcaica. A batalha dela contra o Norman Bates de SP não é para dar cara ao vilão e, sim, para emprestar holofotes às vítimas.

Essa batalha tira "Maníaco do Parque" do lugar comum e o aproxima de uma linhagem de dramas sobre o papel social de uma manchete, como se vê tanto na ficção, em "A Montanha dos Sete Abutres" (1951), como no .doc, em "Amigo Secreto" (2022). Sua abordagem é pelo medo. O medo de um matador... o medo do silêncio.