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O 'Django' de Orlando Senna

'Longe do Paraíso' põe irmão contra irmã na cena de um Brasil perfumado a pólvora | Foto: Borboleta Filmes

Por Rodrigo Fonseca

Especial para o Correio da Manhã

Laureado com o prêmio de júri popular no Festival de Brasília de 2020, "Longe do Paraíso", um raro exemplar brasileiro de faroeste, calcado nas raízes estéticas do gênero, nunca teve estreia comercial em circuito carioca, mas terá, enfim, projeção em tela grande na cidade nesta quarta-feira (23), às 19h, no Estação Net Botafogo, em homenagem a seu diretor, Orlando Senna, uma grife da produção documental e da política cultural.

Nos dias 6 e 9 de novembro, a produção pede passagem ao público baiano, com exibições em Salvador, sempre com a presença do diretor. É uma forma de celebrar sua obra por meio de uma expressão narrativa refinada, que traz um personagem capaz de abrir debates sobre a prática do vigilantismo: o pistoleiro Kim.

Espécie de Franco Nero do Nordeste, sempre de roupa preta e trabuco na cintura, Kim roga a Deus e manda Bala, carregando a Morte no vítreo dos olhos. Ele já matou demais para quem tem pouco mais de 20 e poucos anos na terra de bravos, sem lei e sem alma, que Senna criou. O realizador marcou época em duo com Jorge Bodanzky em "Iracema, Uma Transa Amazônca", exibido no último Festival do Rio, em homenagem aos 50 anos de sua finalização. Ali, trilhava uma curva nas raias da não ficção. Aqui, ele dialoga com a tradição de John Ford e Howard Hawks, mas de uma maneira particularíssima.

A lembrança de Nero é forte (e eterna) por seu personagem mais famoso: Django. Como ele, Kim também arrasta um caixão, só que não um de madeira e, sim, um feito da matéria existencial que Sartre chamava de Náusea, com o "N" maiúsculo da negação do sentido de pertença. Lê-se em Sartre que "O ser humano é um existente que nasce sem motivo, dura por fraqueza e morre por acaso". Kim até estaria assim se não houvesse um vetor que obrigasse o sujeito a encontrar um propósito: matar. Sua patroa, chamada Madame (papel que Sonia Dias executa numa atuação viçosa), obriga que este pistoleiro de um Brasil regido a balas nunca se mantenha inerte na ciranda nauseante de seu dia a dia. Matar é sua CLT.

A alusão a Django - dado o visual do personagem encarnado a vísceras e puro humanismo pelo ator Ícaro Bittencourt, num jorro de potência - pode fazer parecer que estamos numa ambientação de western spaghetti, qual a dos cults de Sergio Corbucci ou de Tonino Valerii. A lembrança é forte, entretanto não é com o bangue-bangue à italiana que o diretor de "Imagem da Terra e de Povo" (1969) se irmana neste longa-metragem. Senna se liga mais ao faroeste psicológico americano do pós-guerra, da lavra de Anthony Mann (1906-1967), sobretudo "O Preço de um Homem" (1953) e "O Tirano da Fronteira" (1955). Há um mal-estar existencialista no bangue-bangue brasileiro que parece muito com a linhagem de Mann.

Embalado pelo que periga ser a melhor trilha sonora de David Tygel em muitos anos (e olha que o nível musical desse compositor é dos mais altos), Senna faz um balé de câmera, de gestos sinuosos. Enquadra de maneira estanque, apoiado por uma fotografia apolínea (assinada por Pedro Semanovisch), sendo quase monolítico em alguns movimentos, como no plano e contraplano em que as entranhas afetivas de seus personagens sãs evisceradas. Na hora dos tiros, tudo é ágil, pois a montagem (impecável) de Luiz Guimarães Castro responde (sem nervosismos, mas bem atenta) às cartilhas do faroeste moderno.

Nos primeiros minutos de "Longe do Paraíso", na sequência que melhor dialoga com o histórico documental de Orlando (como "Gitirana", feito com Jorge Bodanzky), Kim mata um homem e seu filho (uma criança) num ataque a um acampamento do MST. Artesão do realismo político e dos códigos documentais de denúncia, o veterano realizador baiano se desgruda de seu protagonista para cartografar a exclusão ao falar do empenho resiliente do Movimento dos Sem Terra. Mas, logo, num fluxo de edição preciso, o cineasta volta a enquadrar o duplo assassínio cometido por Kim a partir dos ditames da trama e revela que o ato foi um erro dele como matador. Morreu quem não deveria: ele matou as pessoas erradas. Para pagar por seu deslize, Kim é escalado para assassinar uma mulher ligada à resistência fundiária no Nordeste. O alvo é Bel, personagem de muitos calos nas mãos e na alma a quem Emanuelle Araújo, em seu mais potente desempenho como atriz, esculpe de um barro similar àquele de onde Anna Mangnani tirava as heroínas do Neorrealismo. O componente que mais pesa no fardo/fado de Kim é o fato de que Dea é sua irmã. Brota daí um conflito trágico regado a pólvora.