Quando lançou "Salve o Cinema" (1995), sob o endosso do Festival de Munique, o realizador Mohsen Makhmalbaf foi alçado ao panteão das vozes autorais que fizeram do audiovisual do Irã um oásis estético e sociológico, que, com generosidade, cedia ao planisfério cinéfilo acesso a uma cultura cercada de contradições.
Dois outros gigantes, Abbas Kiarostami (1940-2016) e Jafar Panahi, despontavam à época, cada um com um registro particular, mas todos nas franjas entre a não ficção, o ensaio e a fábula. Em sua terceira visita ao Brasil, agora no posto de jurado na 48. Mostra de São Paulo, que termina nesta quarta, Makhmalbaf olha em retrospecto esse seu tempo de formação e se põe a relembrar dos dias em que passou na prisão (sob tortura), em sua juventude, e revisita sua meninice pobre, faminta por pão. Tais vivências transbovam de seus poros quando ele rodou seus primeiros longas e se fizeram presentes em todos os cults que teve a chance de emplacar nas telas: "Gabbeh" (Melhor Direção no Festival de Sitges, em 1996), "O Silêncio" (1998), "O Caminho para Kandahar" (Prêmio do Júri Ecumênico de Cannes em 2001) e "O Presidente" (2014).
"Na cadeia, em prisão política, eu li um livro por dia, quase sempre de poesia. O Irã, de forma diferente do que se passa com o Ocidente, não tem uma tradição na pintura, porque pintar é proibido, mas tem uma vasta história com poemas. O cinema que eu aprendi a fazer veio da imersão poética", diz o cineasta ao Correio da Manhã no café do Espaço Augusta.
Na 35ª edição da Mostra, em 2011, ele recebeu um troféu honorário, o Prêmio Leon Cakoff. Ampliou ali sua relação com o evento, que exibe hoje um par de .docs seus: "Aqui As Crianças Não Brincam Juntas" (às 22h30, no Espaço Agusta 2) e "Falando Com Rios" (às 20h10, no Cinesystem Frei Caneca). Em seu trabalho como jurado, ele delibera decises ao lado de Mohsen, a atriz brasileira Camila Pitanga, o ator e cineasta português Gonçalo Waddington, a curadora e produtora Hebe Tabachnik, o produtor Kyle Stroud e o crítico de cinema francês Thierry Meranger.
Como escritor, Makhmalbaf publicou 30 livros, traduzidos para diversos idiomas.
No bate-papo a seguir, o multiartista compartilha suas iquietações acerca da realidade iraniana.
Que corrente estética a sua filmografia segue?
Mohsen Makhmalbaf: Eu nasci na pobreza, o que me ensinou, desde cedo, a ter simpatia por pobres e a buscar narrativas que falem da realidade deles sem horrorizar. Passei quatro anos e meio na cadeia e tenho cicatrizes de tortura no meu corpo que documentam essa época. Com a dor, eu não virei intelectual e não me tornei alguém que faz filmes em busca de fama. Ser artista é querer transformar o mundo. Meu cinema ambiciona mudar vidas. No Irã, o filme que se diz independente ou tenta ser formalista ou quer ter várias dimensões de crítica social. Eu busco os dois extremos.
Dois longas iranianos que estão sob o veto de seu governo se destacaram em festivais estrangeiros: "Meu Bolo Favorito" foi laureado na Belinale e "The Seed of The Sacred Fig", em Cannes. Esse último pode ser nomeado ao Oscar, apesar da perseguição do Irã a seu realizador, Mohammad Rasoulof. O senhor já viu os dois longas? Como vê essa perseguição estatal a eles?
Só vi o de Rasoulof. Gosto dele como pessoa, mas sinto que o filme dele impressiona mais as plateias estrangeiras do que as iranianas, pois se concentra em algo que já conhecemos bem. É uma boa súmula, apesar disso. Sabia que, mais do que censurá-lo, o governo queria mantê-lo preso por oito anos? Eu não gosto do regime que temos hoje e de seu totalitarismo.
Seu cinema acredita na redenção, apesar das pressões de um estado marcado por travas que passam pela religião. O senhor ainda consegue acreditar em Deus?
No Deus que vem de fora, que está no alto, não, mas acredito na Natureza e creio que há alma nela. Religiões criam dogmas. Há um poema iraniano que diz assim: "A verdade era um espelho que vivia no céu. Um dia ela caiu e se quebrou. Várias pessoas pegaram um caco de vidro desses e disse, ao olhar para aquele pedaço: 'a verdade está nas minhas mãos, a verdade é minha'". É assim que as religiões pensam.
Qual é o desafio de ser júri no Brasil?
A Mostra é um evento de grande relevância para a cultura do Brasil não só por trazer filmes dos maiores festivais do mundo, mas por cativar uma plateia que conhece cinema como poucas. Ao fazer a retrospectiva de um diretor como o indiano Satyajit Ray, ela nos oferece a entrada em uma obra que tem múltiplas camadas. O cinema nos leva ao desconhecido.