Cicatrizes de Israel na respescagem do Festival do Rio

Politizado e tenso, 'O Soldado Sem Rastros' sacodiu o Festival do Rio - que abre sua repescagem - ao mostrar a juventude Tel Aviv sob a ótica de um fugitivo dos fronts

Por Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Politizado e tenso, o longa 'O Soldado Sem Rastros' sacodiu o Festival do Rio - que abre sua repescagem nesta segunda - ao mostrar a juventude Tel Aviv sob a ótica de um fugitivo dos fronts

 

Conflitos políticos nunca passam incólumes pelo Festival do Rio e as batalhas de Israel, seja as questões atuais com o Irã, seja a eterna rusga com Palestina, fazem parte do pacote do evento carioca, que encerrou ontem sua edição 2024. Um dos longas-metragens estrangeiros de mais repercussão da maratona veio de Tel Aviv: "O Soldado Sem Rastros" ("The Vanishing Soldier").

Em 2023, a produção estreou mundialmente na competição oficial de Locarno. Schlomi, seu protagonista, é um israelense de 18 anos, que pode ser descrito como um herói. Ou quase.

A boa (mas, apesar disso, controversa) acolhida ao longa-metragem de Dani Rosemberg nas telas da maratona cinematográfica do RJ faz de Rosenberg uma promessa em telas da América Latina. O cineasta é de uma geração atenta ao pop, menos subserviente a ditames geopolíticos do que outros artesões de sua terra natal.

"Filmes precisam ser apreciados pela força estética que carregam como cinema e não apenas pela temática que abordam", defende o diretor, numa conversa com o Correio da Manhã em Locarno, onde incendiou um debate sobre as formas de representação da juventude (e do heroísmo) em um território cindido por conflitos históricos. "Quando eu penso em Schlomi, Antígona me vem à cabeça, numa alusão a um ensinamento dos gregos, do teatro, a partir de onde passamos a perceber que heróis são rebeldes forçados a pagar um preço pela jornada de formação que empreendem".

Frenético, por vezes, triste, e, muitas vezes, bem-humorado, "O Soldado Sem Rastro" mostra as consequências de uma traquinagem de fim de adolescência (mas muito perigosa) praticada por Schlomi: em meio a um ataque à sua unidade militar, ele foge. Cheio de planos para o futuro, o rapaz presta serviço no Exército para apoiar sua pátria. Contudo, a chance de sumir oferece a ele uma oportunidade de deixar a violência para trás. O problema é que seus colegas de farda e seus oficiais acreditam que ele foi morto pelo inimigo ou foi capturado. Logo, o tal "recruta desaparecido" de que fala o título do longa de Rosenberg acaba por se tornar uma figura mítica num contexto onde crescer e lutar são verbos sinônimos.

"Foi negada a Schlomi a chance de ter uma adolescência como a de outro jovem de sua idade o que o impele a construir uma outra narrativa para seu presente. Isso tem um custo", diz o diretor, que filmou em locações improvisando muitas tomadas, burlando (vez ou outra) a exigência de documentos oficiais de permissão para rodar em espaços públicos. "Fomos avisados que o Hamas estava de olho na gente. Depois, recebemos a informação de que essa célula entendeu que só estávamos rodando um filme".

Embora tenha uma mirada provocativa sobre a imposição do serviço militar aos israelenses, "O Soldado Sem Rastro" - que hoje busca estreia em circuito comercial sul-americano - está mais preocupado em gerar uma espécie de crônica da chamada "primavera da vida", centrada em na chegada da vida adulta. Por isso, a atitude fujona de Schlomi - que é bem interpretado pelo ator Ido Tako - evoca o mítico matador de aulas Ferris Bueller, imortalizado por Matthew Broderick em "Curtindo a Vida Adoidado" (1986).

"Pensei em Ferris e pensei muito no Marty McFly da trilogia 'De Volta Para o Futuro' em meio à criação do perfil de Schlomi, por retratar esse espírito de alguém que foge das imposições institucionais", diz Rosenberg. "Ao mesmo tempo, o jovem que Schlomi simboliza é visto no meu filme sob uma perspectiva contrária ao épico, contrária ao legado de 'A Odisseia'. É um herói que aprende, aos poucos, que a vida não é um sonho".

Nesta segunda, salas do Grupo Estação em Botafogo e na Gávea iniciam a Repescagem, uma mostra extra que dá chance à população local de ver alguns dos hits da programação integral, exibida de 3 a 13 deste mês. A boa pedida de hoje é "Império", comédia sci-fi que rendeu o Prêmio do Júri ao gaulês Bruno Dumont na Berlinale: passa às 18h30, no Gávea 2. Lá mesmo, às 21h15, rola o documentário "Misty - A História de Erroll Garner", de Georges Gachot, sobre um mito do jazz. A boa do Estação NET Rio é a projeção seguida de dois documentários do chinês Wang Bing feitos para sua trilogia "Juventude": às 14h rola "Tempos Difíceis" e às 18h, "De Volta Ao Lar". Na quarta, há um título imperdível: o terror "Herege", com Hugh Grant, em sessão às 21h45, no Estação NET Gávea 5.