Luciano Vidigal: 'Periferia é a possibilidade de sonhar'

Por Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Vidigal com o troféu Redentor de Melhor Direção por 'Kasa Branca'

Depois de dar à competição nacional do Festival do Rio sua imagem mais linda - uma visão da malha ferroviária de Mesquita, onde uma avó cadeirante e seu neto zeloso olham a cidade do alto, vendo o trem passar -, a aula de lirismo chamada "Kasa Branca" não poderia ter destino melhor que a coroação de seu realizador, Luciano Vidigal, com o troféu Redentor de Melhor Direção. Ganhou ainda as láureas de Melhor Fotografia (Arthur Sherman), Trilha Sonora (Guga Bruno e Fernando Aranha) e Ator Coadjuvante (Diego Francisco). No próximo dia 24, às 21h45, no Espaço Augusta 1, a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo vai imergir na paisagem da Chatuba retratada por ele. Será a vez de a plateia paulistana entender toda a poesia que o cineasta (também ator, roteirista e diretor teatral) de 44 anos imprimiu em seu primeiro longa-metragem de ficção solo.

Cria do coletivo carioca Nós do Morro, egresso do mesmo Vidigal celebrizado em seu sobrenome, Luciano já havia conquistado holofotes no passado ao dirigir os curtas "Lá do Alto" (2015) e "Neguinho e Kika" (2005), além de ter rodado um dos episódios de "5xFavela, Agora Por Nós Mesmos", lançado no Festival de Cannes, em 2010.

"Estou muito feliz em estar com quatro Redentores, pois o Festival do Rio é uma grande vitrine", comemora o artista, que atuou em sucessos como "Tropa de Elite 2" (2010) e codirigiu o .doc "Cidade de Deus: 10 Anos Depois" (2013), com Cavi Borges.

A vertente histórica do naturalismo, que vem lá da prosa literária, com "O Cortiço", é usada por Vidigal em "Kasa Branca" numa perspectiva solidária (e não catastrofista), a fim de ilustrar a vida de três jovens amigos num cotidiano de reeducação afetiva: Dé (Big Jaum), Adrianim (Diego Francisco) e Martins (Ramon Francisco, hilário). O trio vive os perrengues de uma cidade que isolou bairros e municípios distantes do mar, padecendo de um serviço de saúde deficitário na rede hospitalar pública. Apesar das várias dificuldades, aquela galera não esmorece. Nem Luciano, que conversou com o Correio da Manhã sobre sua consagração.

Que Rio que você retrata em "Kasa Branca" e que doçuras e delicadezas ele tem?

Luciano Vidigal: Cinema também é território. Esse filme tem uma coisa que eu ressalto muito: tem o corpo preto jovem ali, numa narrativa de amizade. Tem ainda uma relação da avó em iminência da morte com seu neto. Esse filme é uma narrativa de afeto, é um cinema que busca poesia. Fiz questão de filmar a Baixada Fluminense, em Mesquita, na Chatuba, porque a gente sabe o quanto os poderes públicos são ausentes lá, mas a gente tem um povo muito poético e muito potente. O filme criou uma relação com o trem, que virou um personagem. Sempre busquei na decupagem de fotografia, no roteiro, nos planos gerais, no que fosse... trazer a poesia da Baixada. O mundo precisava conhecer esse lugar. Queria mostrar esse Rio de Janeiro potente, que é poético e que não tem ainda uma visibilidade democrática no audiovisual.

O quanto daquela geografia conversa com o seu território de berço?

Tem uma frase do Mano Brown que eu adoro. "Favela é favela em qualquer lugar, agora a gente tem que conhecer, tem que saber entrar e conhecer a cultura do lugar". A gente é semelhante, só se diferencia na questão cultural, mas a favela tem autenticidade, tem originalidade, tem dialetos, e eu cresci com isso. Sou cria do Vidigal. O lugar em que eu moro se chama Jacobal, que hoje, na verdade, é chamado de Casa Verde. Fica no alto do Vidigal. Tenho uma visão muito alta do Rio de Janeiro e não é à toa que o nome da minha produtora se chama Do Alto Produções, porque a favela me deu essa amplitude de ver a cidade do alto. A nossa semelhança com a Chatuba está nos becos e nas vielas, nos campos de várzeas, nos matagais, nas ruas de barro, nas ruas de asfalto. Isso tudo eu achei na Chatuba. Adoro botar a câmera nesses lugares e fazer com que o mundo enxergue a poesia que esses espaços têm.

O que a palavra periferia representa para você?

Periferia é a possibilidade de sonhar. Periferia significa resistência, significa ancestralidade, diversidade. Tem uma filosofia africana, o Ubuntu, que diz: "eu sou porque nós somos". A periferia me trouxe muito esse lugar do coletivo. Sou cria de favela. Falo que faço cinema do povo para o povo. É o filho da empregada contando a história do povo. A nossa identificação está aí na origem. Eu fui um menino muito pobre, mas a gente resistiu com muito afeto, muito amor, com sonhos, e cá estou eu, filmando. O grupo Nós do Morro, que está comemorando 38 anos de resistência, possibilitou que eu sonhasse.

O que o Nós do Morro simboliza dentro da construção simbólica da periferia?

É um grupo pioneiro. Uma ação sociocultural, artística, que está fazendo 38 anos dentro de uma favela. É um projeto que saiu de um lugar marcado por problemas econômicos, de renda aquisitiva muito baixa, mas geograficamente muito lindo, que revelou astros. O que é mais importante dizer sobre o grupo é que a qualidade quebra paradigma. A qualidade do seu trabalho, da sua arte, traz a inclusão, ela quebra paradigma. Aprendi com o Nós do Morro a procurar fazer filmes que tenham qualidade. É meu berço, minha família.