Um doído painel das transformações sociais da China pede passagem na Mostra de SP

Boicotado por seu governo, o diretor Wang Xiaoshuai esgarça limites entre imaginação e realidade ao falar da infância em 'Acima da Poeira', expondo imposições estatais de seu país

Por Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

O campo de trabalhadores retratado por Xiaoshuai em 'Acima da Poeira'

 

Mesmo deixado de fora da disputa pelo Urso de Ouro, exibido em solo germânico na seção Generation, "Acima da Poeira" ("Above The Dust") atropelou o último Festival de Berlim, em fevereiro, com seu olhar sobre a infância e a adolescência numa China assombrada pela ação nem sempre empática do estado. Conhecido no circuito brasileiro por "Bicicletas de Pequim" (2001), Wang Xiaoshuai, seu realizador, assina a direção desse drama geracional eivado de debates sociais com os olhos voltados para o que se passa na cabeça de um garoto de 10 anos. Depois da Berlinale, o filme chega ao Brasil, na Mostra de São Paulo, onde faz sua estreia neste domingo, às 21h45, no Cinesystem Frei Caneca 4.

"É difícil para uma criança estabelecer fronteiras entre a fantasia e a realidade ao avaliar um contexto no qual se sente oprimida. Já eu, um homem na casa dos 60 anos, tenho a obrigação civilizatória de me isentar do que é imaginário e me aferrar no que são evidências concretas, sem licenças líricas. A interseção que eu busco nesse filme está na aproximação do meu olhar ao de um menino que olha curioso para o que desconhece... e reage", diz Xiaoshuai ao Correio da Manhã, numa ala da Berlinale Palast.

Na trama, o pequeno Wo Tu sonha ter uma pistola d'água num campo de trabalhadores que sofre um processo de desapropriação de bens pelo governo. Esse desejo vai levá-lo a exóticas ações, que envolvem seu avô, um ancião à beira da morte.

"As medidas da infância sobre o mundo, com suas licenças poéticas, ganham um contorno econômico na perspectiva que eu trago nesse filme, ao ancorar os devaneios de um garoto em um território no qual medidas governamentais interferem sobre a vida. No meu relato, há uma intervenção pública regida pela ação do dinheiro. Ela se confunde com a história que Wo Tu cria em relação a sua arminha de plástico", diz o cineasta, que, em 2019, comoveu plateias com "So Long, My Son", hoje disponível na plataforma MUBI (www.mubi.com).

É um doído painel das transformações sociais da China, da década de 1980 em diante, a partir da experiência afetiva de um casal devastado pelo luto, decorrente da morte de um filho, ainda criança, nas águas de um canal. Foi um longa que custou ao diretor um boicote público.

"Não sei se 'Acima da Poeira' será lançado no meu país, pois a China não gosta que se fala de seu passado e eu não aceito autocensuras, nem travas de gênero, o que me leva a filtrar caminhos folhetinescos", disse Xiaoshuai ao Correio. "O melodrama lida com a dor a partir de causas. Não exploro as causas da dor. Eu estudo suas consequências".

Tem mais projeções de "Acima da Poeira" na Mostra. Rola sessão nesta quarta, às 17h30 na Cinemateca Brasileira, e no dia 26, às 19h45, no Sato Cinema.