Sérgio Machado: 'A magia do candomblé fez parte constitutiva da minha infância'

Por Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Sérgio Machado, cineasta

Ao mesmo tempo em que bomba no streaming, na grade da plataforma Max, com a série "Cidade de Deus, A Luta Não Para", da qual foi roteirista, o diretor baiano Sérgio Machado brilha nas telonas ao retomar os laços com a criança que um dia foi.

No dia 13, ele foi agraciado com o troféu Redentor de Melhor Documentário no Festival do Rio por "3 Obás de Xangó", no qual retrata a amizade (assunto principal de sua obra, vide "Cidade Baixa") entre três orixás da cultura: o compositor Dorival Caymmi (1914-2008), o artista plástico Carybé (1911-1997) e escritor Jorge Amado (1912-2001).

A narrativa reafirma a Bahia como território abençoado por ancestralidades africanas, resgatando vivências do realizador de "O Rio do Desejo" (2022) com sua meninice. O .doc será exibido pela 48ª Mostra de São Paulo nesta sexta, às 20h40, no Cinesesc, e no domingo, às 14h40, no Cinesystem Frei Caneca 3. É também na Mostra que Sérgio promove o lançamento mundial de sua primeira incursão em longas de animação: "Arca de Noé".

É óbvio que o Exu Mirim residente em seu coração circunda a aventura inspirada nos poemas infantis de Vinícius de Moraes (1913-1980). Com um elenco estelar de vozes, a saga de dois ratinhos marotos, Tom e Vini (interpretados só no gogó por Rodrigo Santoro e Marcelo Adnet), tem mais um par de projeções no evento paulistano: domingo, dia 27, às 15h45, no Espaço Augusta 2, e na outra terça, dia 29, no Cinesystem Frei Caneca 1, às 16h30. Anima o Brasil, Sérgio, mas responde a gente:

Qual é a Bahia que se reflete nas conversas e nos encontros dos três Obás e o que esse pedaço do Brasil traduz sobre a ancestralidade africana em nossa cultura?

Sérgio Machado: Muniz Sodré, que é um sociólogo brilhante e também um Obá de Xangô, diz que a Bahia recriada por Jorge, Caymmi e Carybé talvez seja mais cordial do que ela realmente é. Eles retrataram em suas obras uma terra é permeada de afetos, de tolerância e solidariedade uma terra fortemente marcada por uma energia feminina. Eu sou baiano, fui criado em torno do Candomblé por conta da minha mãe, que era ligada à religião, e sempre fui rodeado por mulheres fortes, a quem aprendi a admirar. Na minha opinião essa Bahia que conhecemos hoje, foi 'inventada' pelas grandes mães de santo como: Mãe Senhora, Mãe Aninha, Mãe Stella, Mãe Olga do Alaketu. A conclusão a que eu cheguei no final do documentário é que os três não "criaram" uma Bahia, mas talvez tenha sido seus melhores tradutores. Eles receberam essa missão de Xangô e de Mãe Senhora, yalorixá do Ilê Axé Opo Afonjá, e levaram a tarefa adiante com muito brilho.

O quanto dessa Bahia do filme está em você? Qual é a sua Bahia?

Talvez os "3 Obás de Xangô" seja o filme que mais claramente reflete a minha vida e as coisas em que eu acredito. A Bahia que eu amo, é aquela que se criou em volta do Candomblé. A Bahia das mulheres fortes e poderosas, que cultua Oxum e Yemanjá, divindades das águas. Quando eu era criança minha mãe, Ieda Machado, participava ativamente da luta contra a intolerância religiosa em Salvador, era uma militante ativa e eu, que sempre fui muito grudado, participava de tudo com ela. Ela era muito amiga de Pierre Verger, de Mãe Stella, de Olga do Alaketu, de Mãe Edenis e Makota Valdina, nomes fundamentais do candomblé da Bahia. Ela era madrinha de blocos afros e afoxés e desfilei neles desde criança. Ela morou um tempo na África e costumávamos receber africanos. Eu me lembro de que, quando era menino a gente costumava abrigar em casa refugiados africanos de diversos países e eu fui criado no meio disso tudo. A magia do candomblé fez parte constitutiva da minha infância e a adolescência, mas depois que terminei a faculdade e mudei para o Rio, e depois pra São Paulo, para fazer cinema, eu me distanciei um pouco. Esse filme para mim é também um reencontro com minhas raízes e com as lembranças da infância e com minha mãe. Durante as filmagens fui convocado por Xangô e, assim como Jorge, Caymmi e Carybé, pretendo me iniciar na religião.

Depois de uma bem-sucedida incursão documental, você se arrisca na animação. Qual e como foi o processo de aprendizado de "A Arca de Noé" acerca de novas formas de narrar?

Sérgio Machado: Uma das coisas que mais me atraem num projeto novo é que ele seja bem diferente do que fiz anteriormente. Gosto de me aventurar em novos formatos de correr riscos e experimentar. Nos próximos meses, por uma certa coincidência, vou lançar 5 projetos diferentes. Há um mês estreou a série "Cidade de Deus, A Luta Continua", inspirada no filme de Fernando Meireles, na qual liderei a equipe de roteiristas. Além de "A Arca de Noé" e "Os 3 Obás de Xangô", diz o .doc "Bahia Me Fez Assim", que traça um panorama da música baiana atual, e a série "Maria e o Cangaço", para o canal Disney , que vai mostrar o cangaço e a saga de Lampião e Maria Bonita, a partir do ponto de vista feminino. Acredito que todas elas partem de um mesmo desejo de entender melhor esse país incoerente, violento e caótico que é o Brasil e da admiração que tenho pelo seu povo.