Melhor que o sanduíche de presunto do Chaves

Egresso da pátria de Chapolin, 'La Cocina', de Alonso Ruizpalacios, chega ao Brasil depois de incendiar debates sociológicos na Berlinale, com seu olhar sobre a imigração mexicana

Por Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

'A Cozinha', de Alonso Ruizpalacios, é um microcosmo de tensões sociais

Celebrado afetuosamente entre os brasileiros desde a chegada de "Chispita" (1982) ao SBT, querido por suas telenovelas e pelo seriado do Chaves, o México promete ganhar a Mostra de São Paulo pelo estômago hoje, com a entrada de "A Cozinha" ("La Cocina") em sua grade. Berlim salivou e lambeu os beiços com a exibição dessa iguaria na disputa pelo Urso de Ouro.

A direção é de Alonso Ruizpalacios. Em 2018, ele saiu premiado da Berlinale pelo roteiro de "Museu" e, em 2021, conquistou o Prêmio de Contribuição Artística, dada à montagem de seu "Um Filme de Policiais", lançado pela Netflix. Nenhum dos dois chega aos pés de seu novo e exuberante longa-metragem, que é falado parcialmente em Inglês, é ambientado em Nova York, mas se concentra na vida de migrantes hispânicos num ambiente de xenofobia. A sessão inicial dele na maratona paulistana será às 19h30 desta noite, no Reserva Cultural 2, com mais duas projeções no evento: amanhã (sexta), às 15h20, no Cinesystem Frei Caneca 2, e no dia 29 (terça que vem), às 21h10, no Espaço Augusta 1.

"Venho da classe média do México, filho de um médico", disse Ruizpalacios ao Correio da Manhã, quando "A Cozinha" ainda estava no papel. "Não saberia falar das favelas do meu país, de modo a abordar com verossimilhança as relações de opressão em ambientes periféricos, mas tenho interesse em falar do mundo que conheço, da realidade mexicana que me cerca. O México é uma nação muito complexa e eu quero celebrá-la".

Neste momento em que a série "O Urso" ("The Bear"), com Jeremy Allen White, faz tanto sucesso (no streaming) ao explorar as tensões de quem vive do verbo cozinhar, "La Cocina" consegue dar uma abordagem inusitada (e sociopolítica) ao tema, apoiada numa engenharia de filmagem ousada. Numa aeróbica de câmera, que lembra o "Birdman", de seu conterrâneo Alejandro González Iñárritu, o filme de Ruizpalacios aposta num preto e branco contínuo, temperado de chiaroscuros pela cinematografia de Juan Pablo Ramírez, à exceção de um ou dois efeitos (azulados) que se fazem notar na tradução das graves crises mentais de um de seus personagens centrais, o cozinheiro Pedro. O papel é vivido por Raúl Briones.

Poço de carisma, Pedro é uma das estrelas dos bastidores do sempre lotado The Grill, casa onde se come o melhor Frango Marsala de NY e o "podrão" mais gourmetizado dos EUA. No fogão e na grelha, o anti-herói de Ruizpalacios (destaque de uma narrativa coral, na qual todo personagem tem seu solo) está sofrendo. Ele vive uma convulsão afetiva, ao saber que sua namorada, Julia (papel de Rooney Mara, de "Carol"), atendente desse empório gastronômico, quer fazer um aborto.

Sempre tenso, o chef vivido por Lee R. Sellars, líder e uma tropa de funcionários de diversos cantos do mundo (sobretudo de Guadalajara, Acapulco e Cidade do México) carece de empatia. Apesar de tudo, Julia se sai bem com ele e com as colegas, fazendo um truque inusitado com os cigarros que não lhe saem da boca. O problema é que a panela de pressão emocional de Pedro não dá conta das turras em que vive com ela, com o patrão e com os vetores de exclusão que o cercam. Uma acusação de roubo só piora sua vida, mas faz "La Cocina" entrar numa espiral sociológica naturalista que ferve, a temperaturas altas, todas as angústias latinas da atualidade. Teve gente que se incomodou com a crueza com que o filme expõe corpos e com a selvageria de sua edição, mas reside nela sua potência plástica.

Também nesta quinta, o México comparece na Mostra com "Sujo", de Astrid Rondero e Fernanda Valadez, que é o candidato oficial da pátria de Chapolin Colorado na disputa por uma vaga na corrida do Oscar. Laureado nos festivais de Sundance e de San Sebastián, este thriller social à la "Cidade de Deus" acompanha o amadurecer de um garoto cujo pai é morto pelo envolvimento com cartéis. Adolescente, ele tenta refazer a vida e estudar, com a ajuda de uma professora idealista, mas o chamado da violência parece forte demais. A exibição dele hoje vai ser às 13h30, no Espaço Augusta 2, com outra projeção no sábado, às 15h10, no Cinesystem Frei Caneca 6.