'Nayola', uma animação decolonial

Produção portuguesa sobre os traumas das guerras coloniais, traduz a pluralidade da Mostrinha, novo setor da maratona paulistana que aposta em vozes autorais animadas

Por Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

'Nayola', que a Mostra de SP exibe nesta terça-feira, na Cinemateca, festeja a coragem das mulheres numa viagem pela África

Sempre atenta às experimentações animadas do Brasil e do exterior, buscando sobretudo as formas mais avessas aos ditames de Hollywood, a Mostra Internacional de São Paulo poucas vezes teve um coeficiente tão grande de narrativas em desenho, em stop-motion e em artes de computação gráfica quanto este ano em que abriu uma sessão nova, a Mostrinha, para formar a cinefilia do amanhã à luz de produções como 'Arca de Noé" e "Abá e Sua Banda".

A curadoria dessa ala do festival paulistano inclui artesões oscarizados, como o japonês Hayao Miyazaki (no menu com "Ponyo - uma Amizade Que Veio Do Mar") e o australiano Adam Elliot (na grade com "Memórias de um Caracol"), mas se abre ainda para experiência antropológicas de cunho poético.

É o caso de "Nayola, Em Busca Da Minha Ancestralidade", do português José Miguel Ribeiro. Tem projeção dele nesta terça-feira, às 14h, na Cinemateca Brasileira (o QG da Mostrinha), e na quarta, no Circuito SPCine, às 17h.

Graças ao Anima Mundi (o maior evento animado da América Latina, suspenso desde 2019), "A Suspeita" (1999) fez de Miguel Ribeiro um queridinho dos brasileiros. Ele devolveu esse amor ao incluir versos do bardo breganejo Nilton César ("Receba as flores que lhe dou/ E em cada flor um beijo eu") na trilha de "Passeio de Domingo", cá exibido em 2010. Com a ausência da maior vitrine nacional de animações o primeiro longa-metragem autoral do diretor teve que buscar outras veredas para poder se expor a seus fãs do Brasil. A saída - de luxo - foi a 46ª edição da Mostra, em 2022. Dois anos depois, "Nayola" volta às telas de essepê. Aplaudido fervorosamente no Festival de Annecy, a Cannes da animação, o longa nasceu do texto teatral "Caixa Preta", de José Eduardo Agualusa e Mia Couto. A partir da peça, o cineasta faz um balanço dos traumas bélicos de Angola, que fazia parte de sua vida a partir de fotografias de seu pai de farda. O filme segue três gerações de mulheres afetadas pela guerra civil: a avó Lelena, a filha Nayola e a neta Yara. Um segredo doloroso, uma busca imprudente, uma música de combate, um amor suspenso e uma jornada de iniciação.

"O filme 'Nayola' não se foca tanto no período colonial, mas, antes, na guerra civil, que, claro, não pode ser vista isoladamente. Não da guerra colonial. Começam a aparecer mais autores portugueses a fazerem filmes que se debruçam sobre alguns aspetos da guerra colonial, mas, julgo importante continuar a desenvolver a criação artística realizada a partir desta fase da história do nosso país. Fase que já começa a estar distante no tempo uma vez que a geração dos militares e civis portugueses que viveram esta guerra está a desaparecer e a geração seguinte poderá encontrar a distância necessária para uma visão mais clara do que de facto aconteceu", disse Miguel Ribeiro ao Correio, à época de Annecy, lembrando que foram quase 1 milhão de portugueses a combater na guerra colonial. "É quase 10% da população portuguesa. Todos os portugueses têm familiares próximos que combateram nessa guerra. Comparando com a guerra do Vietnã, a percentagem de soldados americanos que participaram nessa guerra foi cerca de 1%, contudo, a quantidade de filmes realizados sobre este tema é enorme".

Orçado em 3,5 milhões de euros, "Nayola" demorou cerca de nove anos a ser produzido. "O signo de feminino do filme já estava na peça do Mia Couto e do Eduardo Agualusa. Eles já tinham esse olhar que eu precisei dar continuidade e desenvolver a partir de muita pesquisa, na qual destaco o livro da escritora angolana Margarida Paredes, 'Combater duas vezes'. Lá estão entrevistas com mulheres angolanas que combateram na guerra de libertação e na guerra civil. Destaco ainda o livro de Svetlana Alexievich, 'A Guerra Não Tem Rosto De Mulher'. São entrevistas a mulheres da extinta União Soviética que combateram na 2a Grande Guerra mundial. São duas obras com relatos de delicada e profunda sensibilidade de mulheres que, por vezes, revelam questões simples, de ordem prática, como, por exemplo, as fardas não estarem desenhadas para o corpo feminino", disse o cineasta, ao Correio, em sua primeira passagem pela Mostra. "Durante a realização de 'Nayola', estive sempre rodeado da assistente de realização Catarina Gil; da diretora de animação Johanna Bessiere, a criadora de cenários Gaelle; e de outros elementos da equipe que trouxeram também a sua visão feminina para o filme. Depois, na fase de gravação das vozes, em Luanda, trabalhei de perto com todas as atrizes e atores que trouxeram para o filme as suas histórias e as suas músicas. A atriz que dá voz à adolescente Yara é a rapper angolana Meduza, que descobri num vídeo do YouTube, a disputar um combate rap com um rapaz que tinha o dobro do seu tamanho, mas que nunca a conseguiu intimidar nem reduzir sua determinação e sua capacidade de improviso. Uma hora depois, o produtor que vive em Angola, Jorge António, já tinha conseguido falar com ela que aceitou o desafio de dar voz e vida à Yara. Estas e outras mulheres inspiraram-me e guiaram-me neste filme. Só tive de escutar, sentir e deixá-las habitar o filme".