A floresta reza
Gabriela Carneiro da Cunha e Eryk Rocha refletem sobre a cosmologia ianomâmi com 'A Queda do Céu', destaque latino na Quinzena de Cannes e premiado no Festival do Rio
Processo de imersão na floresta, no coração do Amazonas, "A Queda do Céu" fincou raízes na Quinzena de Cineastas do Festival de Cannes, em sua primeira projeção mundial, em maio, e lá plantou sementes que, regadas a elogios da crítica internacional, hoje oxigenam o solo fértil da 48ª Mostra de São Paulo. Feito em esquema de colaboração com o povo indígena ianomâmi, o transcendente experimento de Gabriela Carneiro da Cunha e Eryk Rocha foi agraciado há 15 dias com o troféu Redentor de Melhor Direção de Documentários no Festival do Rio 2024. Sua narrativa de tons ritualísticos segue o líder e xamã Davi Kopenawa enquanto ele batalha para devolver o equilíbrio à sua comunidade, entre rezas e aforismos filosóficos. Esta noite, plateias paulistanas vão conferir o fluxo de imagens colhidas por Gabriela e Eryk às 21h20, no Espaço Augusta 1. Tem uma projeção a mais amanhã, às 15h45, na Cinemateca Brasileira.
A exploração madeireira ilegal, a mineração de ouro e a mistura mortal de epidemias que as intrusões do garimpo e de outras práticas de depredação contra a selva são tematizados na plenária que Kopenawa cria numa forma de reza. A contundência de suas reflexões ampliou a adesão da Croisette à produção. O mesmo aconteceu no Rio, onde o longa ganhou ainda o prêmio de Melhor Som.
"Documentário e ficção se entrelaçam aqui numa mesma chave, numa encruzilhada, pois a linguagem dos Ianomâmi não faz as distinções que fazemos. Ela entrelaça os saberes", disse Gabriela, uma atriz premiada que se aventurou a filmar o livro "A Queda do Céu", escrito por Kopenawa e Bruce Albert, após ser dragada pela leitura dele. Essa conversou com o Correio em Cannes. "Existe performatividade no Davi e no seu povo, que tem um compromisso com a beleza. Por isso o filme tem circularidade".
Seu companheiro, Eryk, foi premiado em Cannes em 2016 com a láurea Olho de Ouro pelo .doc "Cinema Novo", no qual passava em revista a obra da geração responsável por modernizar o audiovisual no país - e da qual fazia parte seu pai, Glauber Rocha (1939-1981). O cineasta diz que filmou "A Queda do Céu" com Gabriela contando com uma equipe enxuta, somando seis pessoas. O time chegou à fronteira com Roraima antes da pandemia. Registraram entre outras coisas a cerimônia do Reahu, uma espécie de despedida para a morte do sogro de Kopenawa.
"Esse projeto materializa o meu encontro de vida com a Gabi, ou seja, o teatro e o cinema. Só que materializa também o encontro do cinema da gente com o cinema sem câmera dos povos ianomâmis, que se faz de cantos e de danças", diz Eryk. "O grande problema do mundo hoje é que seguimos uma lógica grega, de base aristotélica, segundo a qual o homem está acima de tudo. A cosmologia dos ianomâmi não comporta hierarquias, nem separa natureza de cultura".