Marta Torres: 'Ficamos reféns de sites de busca'
Quando lançou o livro "O Romance do Pé-de-Rosa e a Bananeira", no fim de 2023, Marta Torres deu um spoiler ao Correio da Manhã do que viria ser seu projeto seguinte, no âmbito do audiovisual: "O filme que lançarei aborda a vida nas grandes cidades, o uso das redes sociais, a saúde mental". Essa é a premissa desenvolvida por ela em "Virtualidade", que circulou pelas telas do Chelsea Film Festival (EUA).
Em sua trama, cheia de referências ao cinema mudo, a diretora disseca a era da inteligência artificial a partir da relação entre dois personagens que iniciam uma conversa pelo aplicativo "SocialVerse". O que se desenha como paquera vira um estudo sobre a retórica da cultura digital e, com ela, a solidão. No bate-papo a seguir, Marta Torres partilha com o Correio sua epistemologia de um mundo construído à base do ctrl alt del.
Qual é o espectro de solidão que existe no SocialVerse, o app de "Virtualidade"? Que sintomas da cultura digital balizam a sua investigação no filme?
Marta Torres: Senti que, como sociedade, nós estávamos despreparados para as armadilhas das ilusões no meio virtual. A imagem em movimento numa tela nos passa a sensação de verdade, de forma que somos naturalmente crédulos ao que acontece no mundo virtual, às vezes até mais do que no mundo real, pois neste já estávamos adaptados a questionar. A solidão trazida pela dúvida sobre o que é verdade, a angústia dessa dúvida é o tema principal do filme. Com o advento da inteligência artificial, essa angústia passa a ser apocalíptica. Há quase um monopólio da verdade pelo que é respondido ou mostrado nos sites de busca, as pessoas criam histórias de vida ilusórias e o povo acredita. Além de antidemocrática, essa crença hiper dimensionada no que existe no mundo virtual somada às novas tecnologias de inteligência artificial sedimenta percepções que são somente teorias, mentiras se tornam verdades e a dialética do pensamento humano fica engessada. Então o filme tem o objetivo de semear a dúvida sobre o que é real no mundo virtual, e o que é ilusão no mundo real.
Que referências do cinema mudo inspiram seu olhar e qual é a provocação que existe no gesto de resgatar essa estética do início do século passado em plena era digital?
Charles Chaplin, que inclusive é mencionado no filme, inspirou-me a ousar fazer cinema independente utilizando a universal linguagem corporal como núcleo da contação de histórias. O resgate dessa fase do cinema mudo é uma forma de homenagear a história da sétima arte e lembrar que precisamos honrar a ancestralidade, quem veio antes. Ao retirar os diálogos falados, substituindo-os pela conversa por aplicativo, os personagens se tornam universais, já que o mundo hoje já entende essa forma de comunicação. O cenário do romance é o Arpoador e Copacabana, no Rio, porém a história poderia ser em qualquer lugar do mundo hoje - exceto alguns poucos locais que estão desconectados do mundo virtual. É um tributo ao cinema clássico e um convite à dúvida quanto ao mundo virtual.
De que maneira a sua expressão como autora literária contagia a sua forma de pensar planos para as telas?
Essa história primeiro veio como literatura. Fiz alguns cursos de roteiro para aprender a passar para a linguagem do cinema. A ideia de fazer mudo e numa estética preto e branco envelhecido veio depois do curso de direção de arte na Escola de Cinema Darcy Ribeiro. A escolha dos planos, das aulas de direção com Ruy Guerra; a interpretação, aos anos de aulas de atuação com Harildo Déda ("menos é mais", "palavra é vista na ação"); a fotografia, nas dicas de Evandro Teixeira. Graças aos brilhantes professores que tive, consigo fazer cinema independente. A literatura continua sendo a primeira forma que encontro de expressar o sentimento, só que tem coisas nas quais uma imagem vale mais que mil palavras e fico feliz quando algum filme alcança o espectador de uma maneira positiva.
Qual é o seu maior incômodo em relação à dependência virtual que todos temos hoje?
A falta de filtro para lidarmos com o conteúdo do mundo virtual. Ficamos reféns de sites de busca para acessar o conhecimento da humanidade, e antes mesmo de refletir sobre a razoabilidade do que há no mundo virtual, já acreditamos no que lá está e desacreditamos qualquer outra versão. Isso vale para relacionamentos íntimos, expressão de sentimentos e até a escolha de nossas/os representantes políticos. O maniqueísmo da verdade virtual (quando na maioria das vezes é uma percepção equivocada, transitória), os vereditos sem defesa, os cancelamentos, além de claro a ideia de que a vida da pessoa é só aquilo ali que é mostrado. Claro que tudo isso é imenso agora com a sofisticação da mentira, com o uso de ferramentas de inteligência social. Isso afeta a todas as gerações, o mundo inteiro. É o maior desafio da humanidade agora: a percepção do que é verdade no mundo virtual. Espero que "Virtualidade" traga dúvidas e chacoalhe nossas certezas. "Só sei que nada sei", como admitia o filósofo.