Teve ouro na Paulicéia
Prestes a completar 50 anos, a Mostra de São Paulo encerra sua edição 2024 com memórias de Coppola e um repertório brasileiro dos mais inquietantes
Consultas futuras às memórias da 48ª Mostra de São Paulo hão de manter na posteridade o encontro com Francis Ford Coppola, no Itaim Bibi, no qual o titã responsável por "O Poderoso Chefão" (1972) confessou ter amparado as lágrimas de Glauber Rocha (1939-1981) num encontro em São Francisco, no qual o realizador baiano temia não poder voltar para o Brasil fardado da ditadura militar.
Graças ao empenho da distribuidora O2 Play, o artesão autoral da Nova Hollywood veio até nós trazer "Megalópolis" para o desfecho da maratona paulistana, na última quarta-feira, na Cinemateca Brasileira, onde conquistou a láurea honorária Leon Cakoff. Sua passagem pelo evento não apenas ressaltou a (bem-vinda) ousadia da O2 na distribuição de títulos de CEP estrangeiro em terras nacionais como reforçou a relevância estratégica que esse festival coordenado por Renata Almeida tem no planisfério audiovisual.
Seu júri deste ano fez uma celebração da força feminina na direção de narrativas ficcionais ao coroar "Familiar Touch", de Sarah Friedland (EUA), e "Hanami", da portuguesa de origem cabo-verdiana Denise Fernandes.
O coletivo de juradas e jurados foi formado pela atriz Camila Pitanga; pelo ator e cineasta Gonçalo Waddington; pela curadora e produtora Hebe Tabachnik; pelo produtor Kyle Stroud; pelo diretor e escritor Mohsen Makhmalbaf; e pelo crítico Thierry Meranger. O time laureou ainda dois documentários: o palestino "No Other Land", de Basel Adra, Rachel Szor, Hamdan Ballal e Yuval Abraham, e uma prata da casa, "Sinfonia da Sobrevivência", de Michel Coeli, sobre queimadas no Pantanal. Concederam ainda um troféu de Melhor Realização para o australiano Adam Elliot, pela animação "Memórias de um Caracol" ("Memoir of a Snail").
Renata garimpou 417 títulos de 82 países para a Mostra, com direito a "Ainda Estou Aqui", de Walter Sallles, nosso representante na corrida pelo Oscar, que sai de Essepê coroado com a láurea do júri popular. As plateias ainda premiaram "3 Obás de Xangô", que há 15 dias valeu a Sérgio Machado o troféu Redentor de Melhor Documentário no Festival do Rio, ao falar de orixás da Bahia. O Prêmio do Público também se estende a títulos internacionais, o que valeu um mimo para uma das produções mais convulsivas de 2024: "O Caso dos Estrangeiros" ("A Stranger's Case"), de Brandt Andersen, com CEP na Jordânia. É um drama coral que lembra "Babel" (2006), uma vez que o conflito de um segmento afeta o outro. Ganhou o Prêmio da Anistia Internacional pela forma feroz com que expõe a batalha de um grupo de pessoas para escapar da violência na Síria, incluindo uma médica e um soldado filho de um herói local. Um mercenário interpretado magistralmente por Omar Sy ("Lupin") cruza o caminho de todos, com seu caráter nada louvável.
Muitas pérolas estiveram ao alcance do país nos 14 dias da Mostra, incluindo três fortes candidatos às estatuetas hollywoodianas de 2025: "O Brutalista", de Brady Corbet; "Piano de Família", de Malcolm Washington; e "Saturday Night - A Noite Que Mudou a Comédia", de Jason Reitman. Dos títulos brasileiros, o Correio da Manhã ressalta um, que já havia dado o ar de sua excelência na Première Brasil, mas ganhou novo vulto em SP: "Precisamos Falar", de Rebeca Diniz e Pedro Waddington.
O roteiro de Sergio Goldenberg - baseado no romance "O Jantar", de Herman Koch, e supervisionado por George Moura - é uma aula de dramaturgia, apoiado numa direção nervosa que lembra muito o italiano Marco Bellocchio de "Bom Dia, Noite" (2003). É o melhor filme de Bellocchio que Bellocchio não fez.
Na trama, adolescentes de classe média alta agridem uma mulher em situação de rua que dormia em um caixa eletrônico e ela acaba morrendo. As câmeras não permitem identificar os culpados, mas seus pais (dois irmãos e suas esposas) os reconhecem e precisam enfrentar o dilema de denunciá-los ou não à polícia. A magistral atuação de Alexandre Nero e a devastadora composição de Marjorie Estione no papel de uma Lady Macbeth de Zona Sul fazem desse ensaio sobre o maquiavelismo uma aula de sociologia - e de bom cinema. Foi um achado em uma leva das mais potentes que o país entrega ao circuito, a se destacar ainda "Serra das Almas", thriller à la Sam Peckimpah de Lírio Ferreira, que demonstra o vigor dos filmes de gênero nacionais não só nas veredas do terror, mas também nas franjas da ação, com Ravel Andrade em modo Javier Bardem num enredo de roubo de joias. Que estreie logo.
A PREMIAÇÃO da 48ª MOSTRA DE SP
JÚRI OFICIAL
Melhor Ficção: “Familiar Touch”, de Sarah Friedland (EUA), e “Hanami”, Denise Fernandes (Portugal/ Suíça)
Melhor Documentário: “No Other Land”, de Basel Adra, Rachel Szor, Hamdan Ballal e Yuval Abraham (Palestina), e “Sinfonia da Sobrevivência”, de Michel Coeli (Brasil)
Melhor Direção: Adam Elliot, por “Memórias de um Caracol” (Austrália)
JÚRI POPULAR
Melhor Filme Estrangeiro: “O Caso dos Estrangeiros” (“The Strangers’ Case”), de Brandt Andersen (Jordânia), e “Balomania”, de Sissel Morell Dargis (Dinamarca/Espanha)
Melhor Filme Brasileiro: “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles, e “3 Obás de Xangô”, de Sérgio Machado.
Prêmio Brada de Direção de Arte: “Hanami”
Prêmio Netflix: “Serra das Almas”, de Lírio Ferreira
Prêmio Paradiso: “Malu”, de Pedro Freire
Prêmio da Crítica: “Manas”, de Marianna Brennand, e “Levados Pelas Marés” (“Caught By The Tides”), do chinês Jia Zhangke
Prêmio Abraccine: “Intervenção”, de Gustavo Ribeiro.