Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

'Ainda Estou Aqui'... e para ficar

Walter Salles no set de filmagens de 'Ainda Estou Aqui' com os protagonistas Fernanda Torres e Selton Mello ao fundo. Diretor tem nova (e concreta) chance de conquistar um Oscar | Foto: Alile Dara Onawale/Divulgação

Duas décadas depois de singrar o imaginário cinéfilo na garupa de Che Guevara em "Diários de Motocicleta" (2004), 26 anos depois do Urso de Ouro dado a "Central do Brasil" (1998), Walter Salles volta a pavimentar uma estrada de glórias em direção ao Oscar com "Ainda Estou Aqui", que chega ao circuito nacional nesta quinta-feira depois de fazer um barulhão lá fora. Teve um quilo de aplausos para ele na China, na França, no Canadá. Houve choro aos litros durante suas projeções nos festivais de Nova York e de San Sebastián. Atribuíram-lhe láureas de júri popular na Mostra de São Paulo e no Festival de Vancouver. Pipocam apostas sobre o êxito futuro do longa-metragem (baseado no romance homônimo de Marcelo Rubens Paiva) na premiação anual da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood em tudo quanto é lista de especulações da imprensa estrangeira.

Uma febre de estourar termômetros

Aclamado nos festivais desde sua estreia em Veneza, 'Ainda Estou Aqui' amplia a figura de Eunice Paiva (Fernanda Torres) além da prosa de Marcelo Rubens Paiva, ao colher depoimentos de outras pessoas da família | Foto: Divulgação

O marco zero dessa febre que estoura termômetros foi o prêmio de Melhor Roteiro conquistado por Heitor Lorega e Murilo Hauser no Festival de Veneza, no dia 7 de setembro, quando a produção foi à disputa pelo Leão de Ouro. Saiu lá do Lido ainda com o prêmio humanista SIGNIS e o Green Drop Award.

"No nosso processo de adaptação, estudamos algumas versões que se aproximavam mais da estrutura de memória do livro, mas decidimos ir por um caminho linear que nos afastou da prosa de Marcelo", explicam Hauser e Lorega, em resposta a quatro mãos ao Correio da Manhã, que testemunhou as plateias da cidade espanhola de San Sebastián (lar de um dos mais prestigiosos festivais do mundo) se debulhar em pranto com a cruzada da advogada e ativista Eunice Paiva, vivida por uma Fernanda Torres nas raias do esplendor.

Mãe de Marcelo Rubens Paiva (autor de "Feliz Ano Velho", "Blecaute" e "Malu de Bicicleta"), Eunice brigou anos a fio para dissipar as névoas da tortura e das práticas de sumiço de ditos "subversivos" praticada pelo Estado ao longo dos 21 anos em que o Brasil vestiu farda verde oliva. O motor de sua peleja foi o desaparecimento de seu marido, Rubens, engenheiro e ex-deputado que "sumiu" após ser levado para depor. Selton Mello, em atuação comovente, é quem assume esse papel. Em Veneza, Marcelo destacou emocionado como o ator foi capaz de reproduzir as características de seu pai.

"O que usamos do livro foi o conteúdo de suas memórias, que foi combinado com o de muitas outras pessoas, em especial das suas irmãs Vera, Eliana, Nalu e Babiu", explicam Lorega e Hauser. "Elas nos contaram suas versões de alguns momentos chave dessa história, e nos ajudaram a construir um retrato mais tridimensional de Eunice do que Marcelo faz no livro, a partir do seu ponto de vista como filho. Um exemplo disso é a cena que Babiu vê a mãe chorando depois de receber a notícia do assassinato de Rubens, quando entra em seu escritório para pedir a ela que conserte sua boneca quebrada".

Foi em 1969 que Walter Salles conheceu os Paiva. "Eles vieram morar no Rio, cidade para onde eu voltava após cinco anos no exterior. Assim, passei parte da minha adolescência na casa que eles haviam alugado no Leblon e que está no centro de 'Ainda Estou Aqui'. Nalu era minha amiga mais próxima, enquanto Marcelo era um pouco mais novo do que eu", conta o diretor.

Depois de "Na Estrada" ("On The Road", 2012), exercício de imersão na prosa beatnik de Jack Kerouac (1922- 1969), Walter ficou 12 anos distante dos longas de ficção. Nesse hiato, lançou o .doc "Jia Zhangke, um Homem de Fenyang" (2014). É pelas vias da literatura de Marcelo que ele regressa às veredas ficcionais, num drama ambientado em 1971, em 1996 e em 2014 - em saltos temporais elegantemente editados pelo montador Affonso Gonçalves. Produzido por Maria Carlota Bruno ("No Intenso Agora") e Rodrigo Teixeira ("A Vida Invisível"), "Ainda Estou Aqui" começa com o registro da vida apaixonada do clã Paiva. Eunice e Rubens vivem no Rio com as filhas e o filho numa rotina de dança, festa e casa cheia. Tudo muda para eles no dia em que Rubens é levado por agentes do governo à paisana. Eunice vai fazer de tudo para saber o destino de seu marido. Fernanda Montenegro entra em cena vivendo Eunice em idade avançada, numa sequência que rasga qualquer coração. Um dos pontos mais fortes do filme é a meticulosa fotografia de Adrian Teijido. No elenco coadjuvante, Carla Ribas e Dan Stulbach têm atuações luminosas.

"Em um projeto como o 'Ainda Estou Aqui', o trabalho de pesquisa é fundamental", explicam Hauser e Lorega. "Foram cerca de dois anos de estudos antes de escrevermos o primeiro tratamento do roteiro. Além da pesquisa histórica em fontes públicas e arquivos de jornais, revistas e outras instituições, fizemos também inúmeras entrevistas para cobrir o lado pessoal da vida de Eunice, com outros familiares, amigos, ex-colegas de faculdade e de trabalho. Praticamente tudo que há no filme final é fruto direto desse processo, fora as liberdades que tivemos que tomar para dar conta da jornada em uma narrativa cinematográfica de duas horas".