Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Jean-Michel Frodon: 'Um crítico de cinema deve, antes de tudo, amar o cinema em toda a sua diversidade'

Jean-Michel Frodon | Foto: Divulgação

Responsável por uma mudança radical na maneira como a imprensa europeia se relaciona com a produção audiovisual asiática, ao encher as páginas do "Le Monde" e da revista "Cahiers du Cinéma" com artigos sobre artistas do Oriente, Jean-Michel Frodon exerce um protagonismo histórico na renovação da crítica como ofício profissional e expressão estética. Hoje, faz de seu blog, https://projection-publique.com/, um espaço de formação de olhar. Maratonas cinéfilas do mundo todo convidam o ensaísta parisiense de 71 anos, que milita no jornalismo cultural desde 1983, para falar sobre filmes e treinar resenhistas para o amanhã. É o caso do Festival Varilux, que inaugura sua 15ª edição nesta quinta-feira, com 19 longas-metragens inéditos e um clássico, "O Sol Por Testemunha" (1960), com a França no DNA. O evento, organizado por Emmanuelle e Christian Boudier (da distribuidora Bonfilm), acontece simultaneamente em 60 cidades brasileiras e se estende por dez complexos exibidores do Rio de Janeiro: Cine Santa; os Kinoplexes Fashion Mall, São Luiz e Globoplay; Cinemark Downtown; Cinépolis Rio Design; o circuito Estação (Botafogo, NET Rio e NET Gávea) e o Cinesystem Botafogo.

O compromisso de Frodon - que é professor em terras francesas e na Universidade de Saint Andrews, na Escócia - em solo carioca, a convite dos Boudier, bifurca-se.

Uma de suas missões acontece, hoje, das 19h às 21h, na Alliance Française (Rua Muniz Barreto, 746 - Botafogo), onde conversa com a atriz e cineasta Gabriela Carneiro da Cunha sobre a expressão feminina na direção em sets. Gabriela ganhou o troféu Redentor de Melhor Direção de Documentários no Festival do Rio por "A Queda do Céu", que rodou em dupla com Eryk Rocha. Já na sexta, na Bibliomaison (Av. Presidente Antônio Carlos, 58 - Centro), ele vai conversar sobre crítica, das 10h30 às 17h30, em masterclasses com o jornalista Pedro Butcher.

"Na França hoje, entre as pessoas que estão explorando direções inventivas, eu mencionaria Alain Guiraudie, Bertrand Bonello, Alice Diop, Damien Manivel, Lea Glob, Marie Voigner, Clément Cogitore e Lucie Borleteau", elenca Frodon, citando clássicos como "Acossado" (1960), de Jean-Luc Godard (1930-2022), e "Os Incompreendidos" (1959), de François Truffaut (1932-1984), entre os títulos obrigatórios para quem conhecer a filmografia de sua pátria, onde medalhões com longas carreiras filmam em sintonia com o presente. "Alain Cavalier é perfeitamente contemporâneo, assim como Claire Denis, Leos Carax, Claire Simon e Mathieu Amalric, para citar apenas alguns cineastas que há muito tempo estão em meu radar.

Autor de cerca de 30 livros, como "La Cinéma à L'Épreuve Du Divers" e "Le Monde de Jia Zhang-Ke", ele conversou com o Correio da Manhã por email sobre as evoluções (e as travas) em torno da atividade de pensar o que vem das telas, seus discursos e suas gramáticas.

Falando sobre seu bate-papo com a diretora e atriz Gabriela Carneiro da Cunha, na Aliança Francesa, nesta quinta, sobre a participação das mulheres no cinema: quais são os temas mais marcantes nos filmes de realizadoras de seu país atualmente? Como o recente reconhecimento de Julia Ducournau ("Titane") e Justine Triet ("Anatomia de uma Queda") com a Palma de Ouro de Cannes ampliou a visibilidade das cineastas na França?

Jean-Michel Frodon: Não acho que possamos falar sobre temas marcantes específicos em filmes de diretoras mulheres, pois, pelo contrário, é muito significativo que elas abordem uma grande variedade de temas, em uma grande variedade de estilos. É muito importante que não haja apenas uma categoria ou uma caixa de "filmes de mulheres". Elas fazem filmes e ocupam todo o horizonte. Isso não significa que não existam singularidades em seus filmes que estejam relacionadas, pelo menos em parte, com o fato de serem mulheres. Encontramos neles, de muitas formas, questionamentos críticos de códigos estabelecidos, maneiras de mudar as posições relativas dos protagonistas e formas de atuação, tudo parte de um avanço geral no cinema. Além das Palmas de Julia Ducournau e Justine Triet, devemos acrescentar pelo menos o Leão de Ouro de Audrey Diwan (dado a "O Acontecimento") e o Urso de Ouro de Mati Diop (obtido por "Dahomey"). Cada uma delas, à sua maneira, amplia as formas como os filmes são exibidos e contados, e os mundos imaginários que esses longas inspiram.

Como você avalia o estado atual da crítica cinematográfica na França em termos de: a) busca de novos experimentos na linguagem; b) interesse em ações decoloniais?

Parece-me que a crítica não evoluiu muito, em termos de linguagem, nas formas escritas. A situação é diferente em sites administrados por críticos/influenciadores, que, em alguns casos, encontram maneiras de combinar uma ambição crítica genuína com modos de expressão típicos dessa mídia. Ainda acho que as ferramentas digitais poderiam dar origem a outras formas de praticar a crítica, graças aos recursos do hipertexto, mas não consigo ver isso sendo colocado em prática, seja na França ou em qualquer outro lugar. Quanto às abordagens decoloniais, digamos que elas estão lentamente, muito lentamente, entrando nas formas de pensar, apesar da dominação ainda esmagadora de um superego colonial duplo, da herança colonial francesa e da colonização das mentes por Hollywood. Ainda há um longo caminho a percorrer antes de sairmos dessa influência dupla.

Como o conceito de "cinema de autor" evoluiu aos olhos dos críticos? É possível estender o rótulo de "auteur" a produtores, atores e diretores de fotografia?

Acredito que a noção de autor, sem o uso caricatural atribuído a ela por seus oponentes, continua válida e útil quando se fala da grande maioria dos filmes. Às vezes, o autor não é uma única pessoa, geralmente não mais do que duas. Um filme continua sendo, na melhor das hipóteses, uma "visão do mundo", mesmo quando essa visão é difratada. Ele é o produto, bom ou ruim, de uma subjetividade que abre um espaço a ser compartilhado por cada espectador. Caso contrário, é simplesmente um filme ruim - na verdade, não é um filme, é um programa. Produtores, atores e diretores de fotografia podem desempenhar um papel decisivo na composição dos elementos que compõem um filme, mas essa composição continua sendo feita pelo cineasta.

Como se treina um crítico de cinema? O que ele deve ler? O que ele deve ver?

Na minha opinião, um crítico de cinema deve, antes de tudo, amar o cinema em toda a sua diversidade, ver muitos filmes e gostar de escrever. É claro que é uma boa ideia ter visto (de preferência nos cinemas) Jean-Luc Godard e John Ford, Ozu e Glauber Rocha, Jean Vigo e Hou Hsiao-hsien, Chaplin, Manoel de Oliveira e Chris Marker. Existem, entretanto, muitos outros caminhos que você pode seguir também. Quanto à leitura... eu gostaria de começar com Faulkner e Choderlos de Laclos, Garcia Marquez e Tintin. E também Bruno Latour e Viveiros de Castro, Judith Butler e Frantz Fanon. Mas ler André Bazin e Stanley Cavell, Gilles Deleuze e Serge Daney, "Hollywood on the Nile" e "Esculpir o Tempo" do Tarkovsky, "Laterna Mágica" do Bergman e "L'Hypothèse Cinéma" de Bergala, só pode acrescentar prazer ao conhecimento. Então por que se privar?

Que filmes brasileiros você destacaria em sua formação como crítico e que simbolismo o Brasil exerce em sua imaginação cinematográfica?

Os primeiros filmes de Glauber Rocha, "Vidas Secas", "Os Fuzis", "Ganga Zumba" e, um pouco mais tarde, "Macunaíma", deixaram uma marca indelével em minha descoberta do cinema. Eles carregam uma liberdade, uma energia, uma sensualidade, um espírito de revolta que, para mim e para muitos cinéfilos da minha geração, abriu uma ampla gama de possibilidades de invenção, em uma época em que uma transformação radical do mundo em direção a uma maior justiça parecia uma perspectiva razoável. Com todas as diferenças consideráveis entre esses filmes, (a chegada deles) foi uma promessa tanto para o cinema quanto para a própria existência, na relação entre eles, na relação com os outros, na relação com a imaginação e com as possibilidades de ação.

A folclorização da cultura brasileira pela mídia estrangeira (com o exotismo e a tipíficação) afetou seu olhar sobre nossa produção audiovisual?

Não sei o que você chama de "folclorização da cultura brasileira pela mídia". Não tenho nenhum conhecimento específico sobre a realidade brasileira e confesso que não assisti a muitos filmes brasileiros recentes, mas quando vejo obras magníficas como "Bacurau" ou "A Queda do Céu", sinto que estou me aproximando de realidades importantes e precisas, mesmo que elas sempre me escapem em grande parte, o que é normal. Tenho visto em muitos filmes brasileiros os efeitos da formatação publicitária hollywoodiana, mesmo quando afirmam tratar de assuntos sérios, que na minha opinião são traídos, como "Cidade de Deus" ou "Tropa de Elite".