Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Gregório Duvivier: 'Os papéis pequenos são gigantes'

Em 'Arca de Noé', Gregório Duvivier empresta a voz à cucacracha Alfonso, espécie de Wilson Grey insectóide | Foto: Divulgação

 

Mesmo sob a ameaça do Dilúvio, a catástrofe bíblica que inundou o mundo, a barata Alfonso, uma cucaracha hermana, não perde o jeitinho brasi... quer dizer, latino, de tentar se dar bem nas menores brechas da "Arca de Noé" de Sérgio Machado e Alois de Leo, que chega às telas neste fim de semana.

Com seu jeitão à la Wilson Grey (o coadjuvante mais prolífico de nossas telas), o inseto maroto conta com a inteligência (e a voz) de Gregório Duvivier para fazer rir na animação que pode se tornar um fenômeno popular nacional neste fim de ano. Prestes a estrear peça nova em Portugal ("O Céu da Língua"), o âncora do "Greg News" - programa que mandou para o esgoto os bichos escrotos por trás do golpe de 2016 - fala ao Correio da Manhã sobre sua incursão no universo fabular inspirado nas músicas de Vinícius de Moraes.

O que você trouxe das tuas vivências de humor, em diferentes mídias (vide "Porta dos Fundos"), para encontrar a medida marota que Alfonso, La Cucaracha, tem em sua malandragem? Qual é o lugar daquela barata com ares de Wilson Grey no Dilúvio?

Gregório Duvivier: Foi uma delícia fazer essa barata. Adorei a referência a Wilson Grey, meu ídolo. Meu sonho era chegar, como Grey, aos 100 filmes. Como ele, eu adoro os papéis pequenos. Acho que os papéis pequenos são gigantes. No caso da barata, é um papel literalmente pequeno. É um inseto, mas uma delícia de fazer. Gostei da ideia de uma barata marota, malandra, porque é isso que faz a longevidade da barata: é a malandragem.

Como é a tua relação de espectador com a animação? Que desenhos te formaram?

Eu adoro animação. Cresci nos anos 1990, naquele renascimento da Disney, com "Aladdin", e depois veio a Pixar. Sou apaixonado pelo "Toy Story", por "Monstros S.A.", "Up" e, agora, "Divertida Mente". Acho engraçado que o brasileiro gosta de rir dos títulos portugueses, mas os nossos são muito piores. "Divertida Mente" é um caso. É muito ruim, assim como "Noivo Neurótico, Noiva Nervosa", que é como a gente chama "Annie Hall". Ainda na animação, não posso esquecer do Miyazaki. Sou muito fã. Adoro "A Viagem Chihiro" e "Meu Amigo Totoro". Adoro esse tipo de animação, que é poética, dura, dramática do estúdio Ghibli.

Qual é a responsabilidade de fazer parte do elenco de um projeto que pode levar o cinema animado nacional a novas águas, na maré do sucesso, inspirado em Vinícius de Moraes?

Adorei estar nesse "Arca de Noé", que é realmente a chance de a animação nacional ganhar outros públicos, ganhar um público maior ainda. É uma produção muito bem feita, com grande apuro técnico. Pode ganhar um público inédito para as animações brasileiras.

Você trilha uma carreira muito singular nas telonas, desde "Podecrer!" (2007), com passagens por Cannes ("5xFavela" e "A Vida Invisível") e com primeiros filmes (caso de Mateus Souza e seu "Apenas o Fim"). O que essa trajetória trouxe de mais rico para sua carreira multimídia e como ela ampliou sua cinefilia?

Tive muita sorte no cinema, desde de novo, com gente muito talentosa feito o Matheus, que estava começando, e com figuras mais experientes, como Hugo Carvana. Todo mundo sempre me tratou muito bem. Descobri o prazer do set, que é comparável ao prazer do teatro. É o prazer de você criar junto, como turma, num trabalho realmente coletivo. Isso ampliou a minha cinefilia. Eu vejo filmes, hoje, com mais carinho, porque eu sei o trabalho que dá. Acho que fazer cinema te faz respeitar muito as/os cineastas, todas/os elas/es, até os que a gente não gosta. Todo longa-metragem é uma obra de persistência, de insistência e de coragem. O normal é não dar certo. Então, filme que dá certo é um milagre mesmo, feito as Grandes Navegações. Podem criticá-las, mas os caras tinham uma força de vontade louca. Um filme exige uma força vontade comparável a dos navegadores que se entranhavam mar adentro. É sempre uma viagem que você não sabe se vai ter volta.

Hoje, dois anos depois do fim do pesadelo Bolsonaro, com o cinema voltando aos eixos em termos de editais e apoios públicos, entre outros acertos no país, como você vê o lugar do humor, sobretudo do humor de tônus político?

Eu acho que o Brasil realmente viveu uma época de trevas para a cultura, uma época em que tudo que a gente tinha construído foi destruído. Então, a gente está numa espécie de renascimento. Só que para o cinema o renascimento não é imediato, porque você não faz um filme da noite para o dia. Você precisa escrevê-lo antes de filmar, e só isso já demora um tempo. Depois você precisa pré-produzir, depois você precisa produzir, depois tem a pós-produção. Então é um renascimento do cinema que a gente vai custar um pouco ainda a ver, porque ainda estão estreando produções que começaram antes do governo Bolsonaro. O tempo de filmar no Brasil é esse: 6, 7, 8 anos, às vezes, 10 anos. Acho que "Arca de Noé" tem cerca de 10 anos (a primeira reunião criativa foi em 2012). Com o humor é diferente. O humor tem uma vida mais fácil, pois se sustenta com o público, e ponto. Ele é uma arte do seu tempo. Onde há público, há um humorista vivendo dele.