Apesar de todo o sucesso de “Oppenheimer”, com seus sete Oscars e bilheteria de US$ 975 milhões, há quem ainda considere “Interestelar” (“Interstellar”, 2014) a obra-prima de seu realizador, o inglês Christopher Nolan, o que soa legítimo neste momento em que o filme celebra os dez anos de sua estreia. De segunda até quarta-feira, a Rede Cinemark no Rio (em salas no Norte Shopping, em Jacarepaguá, no UCI da Barra e em Campo Grande) devolvem à tela grande essa superprodução de US$ 165 milhões.
Seu faturamento nas bilheterias chegou a US$ 675 milhões e que, de quebra, a fita papou um merecido Oscar de efeitos visuais. O filme virou livro pelas mãos do escritor Greg Keyes, que adaptou o roteiro dessa cultuada sci-fi, escrito por Christopher com seu irmão mais novo, Jonathan Nolan. A edição no Brasil é da Gryphus. É fácil encontra-la nas livrarias.
“Cresci numa casa de classe média baixa da Inglaterra num momento em que a literatura era a única forma de driblarmos as inquietações sociais que nos cercavam, libertando nossa imaginação. Mas quando eu tinha 7 anos, em 1978, meu pai me levou no maior cinema de Londres pra ver ‘2001 – Uma Odisseia No Espaço’, numa sessão que comemorava os dez anos do lançamento do clássico de Stanley Kubrick. Saí da sessão com a certeza de que o cinema é capaz de tudo”, disse Nolan em Cannes, numa masterclass sobre preservação de longas feitos em película, em 2018, quando abriu seu coração sobre sua formação.
Dois elementos guiam a dramaturgia cinematográfica de Nolan em geral: culpa e necessidade de controle. Há uma mistura covalente de ambos no combustível afetivo que alimenta os motores de “Interestelar”. Matthew McConaughey, seu protagonista, tem uma atuação luminosa no papel de um astronauta em busca de um planeta capaz de abrigar a população da Terra, em um futuro assolado por poeira e fome. Ronaldo Júlio dublou Matthew por aqui.
Na bifurcação de elementos essenciais à grafia do realizador, o primeiro a se apresentar como argamassa onipresente na obra de Nolan foi a culpa. E tal onipresença, somada a um enorme talento para esculpir mágoas e ressentimentos, tem feito dele um realizador autoral. De “Amnésia” (2000) ao onírico “A Origem” (2010), passando pelo subestimado “Insônia” (2002) e por toda a trilogia “Batman” (2005-2012), é caro a ele o desejo de transitar por um limite de dívida moral.
Há em seus personagens a sequela de um erro que os impele a ações eticamente duvidosas. “Eu venho de uma escola noir, por conta do interesse do gênero nos conflitos sociais e nas ambiguidades que eles geram no dia a dia”, disse Nolan em seu colóquio em Cannes, em 2018. “O noir é uma derivação policial do melodrama, que entra em cena, nas telas, para qualificar situações de sentimentos extremos. Por isso, meus personagens se revelam por suas ações mais extremadas. Por isso, eu respeito as paixões que brotam da dimensão sensorial da imagem. No cinema que eu faço, a música tem um papel crucial: a trilha funciona como um relógio que dita o ritmo dos acontecimentos”.
Do lado esquerdo do ringue de sua invenção, aparece a necessidade atávica do controle em seus heróis, os mascarados e os de cara limpa. Do investigador tatuado e amnésico vivido por Guy Pearce em “Memento” ao Homem-Morcego com a fleuma galesa de Christian Bale, os personagens centrais da obra de Nolan são movidos por uma onipotência que fazem deles os senhores da certeza. O agente encarnado por John David Washington no sublime “Tenet” (2020) não era capaz de duvidar dos códigos da Física diante da retidão de sua cruzada justiceira, e se atropelava nas leis de aceleração. Todos os personagens de Nolan acreditam ter pleno domínio da engenhoca chamada mundo no microcosmos onde vivem.
Não é diferente com Cooper, fazendeiro (ex-piloto e futuro explorador do espaço) interpretado por um McConaughey com um visual à la Jeffrey Hunter (galã e grande ator dos anos 1950 e 60) e à la Steve Canyon (herói das HQs de Milton Caniff). A semelhança com Canyon é mais óbvia e vem dos traços apolíneos classicistas no visual do astro, oscarizado por “O Clube de Compras Dallas” (2013). A referência à Hunter vem, não apenas pela proximidade física de ambos, mas pelo fato de ele, Jeffrey, estar no longa que mais se assemelha à história contada por Nolan, numa abordagem fordiana. Sua matriz é o John Ford sublime de “Rastros de Ódio” (“The Searchers”, 1956), no qual J. Hunter coadjuvava John Wayne.
Apesar da fantasia de ficção científica que veste, “Interestelar” é um faroeste cósmico. Um faroeste metafísico. Um bangue-bangue sem tiros (mas com cenas de perigo com adrenalina fora das CNTPs toleráveis). É a saga da conquista de um novo Oeste, empreendida por um herói culpado (por abandonar os filhos) e obcecado em controlar as situações (de perigo à sua volta). O Oeste à sua frente não é feito de planícies verdejantes, mas sim de substâncias aquosas ou rochosas que Mendeleev não categorizou em sua Tabela Periódica (aquela decorada no 2º grau do ensino médio).
O Oeste de Nolan é a imensidão inóspita de um Império em fase de crescimento (e também de povoamento), como era o Império EUA na ótica de John Ford. Assim como ele temperava seus faroestes de crítica, Nolan apimenta este western intergaláctico com um espírito de alarmismo ao iniciar a trama mostrando a Terra de Cooper como um lugar que despreza o passado. Os feitos dos astronautas são desmentidos pelo governo. Uma crise malthusiana na produção de alimentos leva as autoridades a forçarem aspirantes a universitários e mesmo engenheiros gabaritados a viverem como fazendeiros, plantando quiabo, trigo e milho. Mas uma massa de pó decorrente de cataclismos ecológicos anda erodindo os solos férteis e devastando as colheitas. Resta ao ex-piloto buscar alternativas de lavouras.
Num esforço para interpretar uma série de estranhos sinais localizadores, Cooper acaba se deparando com uma base da Nasa, secreta, onde um cientista, o professor Brand (Michael Caine, sempre sublime), e sua filha Amelia (Anne Hathaway), buscam planos Bs e Cs e Ds para o alvorecer da raça humana. O plano de Brand é encontrar um novo lar para os humanos. Este lar estaria numa dimensão paralela a ser encontrada na transposição de fendas galácticas. Amelia vai atrás dessas hipóteses de salvação, mas precisa do reforço de um piloto experiente. Eis que o talento de Cooper se faz presente. É aí que o heroísmo do longa se faz notar e faz preservar sua atualidade – e seu esplendor - uma década depois de seu lançamento.