Revelada ao cinema à luz documental de "O Coco, a Roda, o Pnêu e o Farol" (2007), Marianna Brennand vem correndo mundo desde setembro com uma experiência pelas veredas da ficção, carregada de denúncia, que ganha prêmios por onde passa: "Manas". Na estreia mundial, no Festival de Veneza, o longa-metragem deu a ela o Director's Award da Giornate degli Autori. Depois veio o Prêmio do Júri para sua atriz principal, Jamilli Correa, no Festival do Rio, seguido do Prêmio da Crítica na Mostra de São Paulo.
Na Alemanha, o Festival Mannhein-Heidelberg salpicou-a de láureas. Garimpou telas ainda em Huelva, na Espanha, e Nantes, na França. Na gênese, seu roteiro - assinado por Felipe Sholl, Marcelo Grabowsky, Antonia Pellegrino, Camila Agustini, Carolina Benevides e por Marianna - saiu vencedor do Sam Spiegel International Film Lab. Sua trama testemunha o processo de maturidade a fórceps de Marcielle/Tielle (Jamilli), de 13 anos, num ambiente assombrado pela brutalidade contra as mulheres.
"'Manas' é um filme sobre o feminino e as violências que sofremos. Ele sinaliza essas cicatrizes profundas deixadas pelas diferentes formas de abuso sofridas pela personagem, mostrando a importância de quebrar os silêncios", diz Marianna, que dirigiu o elogiado .doc "Francisco Brennand" (2012), sobre seu tio-avô, e produziu o premiado "Danado de Bom" (2016).
Em "Manas", ela estreia nas veredas ficcionais desbravando as águas da Ilha do Marajó (PA), onde Tielle vive com a mãe, Danielle (Fátima Macedo), o pai, Marcílio (Rômulo Braga), e três irmãos. Cultua a imagem de Claudinha, sua irmã mais velha, que teria partido para bem longe após "arrumar um homem bom" nas balsas. Ao amadurecer, Tielle vê ruírem suas idealizações.
O que você levou de suas vivências documentais para o set de uma ficção imbuída de um realismo tão cru, calcado no triste panorama da violência contra menores?
Marianna Brennand: O "Manas" nasce do desejo de fazer um documentário de denúncia. Quando eu soube dos casos de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes na Ilha do Marajó, fiquei muito comovida e chocada com essa situação. O meu primeiro ímpeto foi fazer um documentário para lançar luz nessa realidade. Logo no início da pesquisa, descobri que, além da exploração sexual infantil, a região também apresentava um alto índice de abuso intrafamiliar. Foi então que me deparei com uma questão ética extremamente delicada: era inaceitável colocar à frente da câmera crianças e mulheres que haviam passado por situações dilacerantes de abuso. Isso seria cometer mais uma violência contra elas. Aí a possibilidade de contar essa história através da ficção se apresentou para mim. A abordagem documental foi mantida durante todo processo do filme. Não paramos de pesquisar e checar fatos e abordagens em nenhum momento, inclusive durante as filmagens. Foram muitas viagens ao Marajó, muitas conversas com consultores, muitas versões do roteiro. O intuito era ser o mais verdadeiro e responsável ao abordar essa realidade, construindo personagens complexos. Toda a construção de linguagem do filme (a fotografia, o som, os diálogos, as atuações, a ausência de trilha musical) tinha a preocupação de não estetizar ou embelezar a violência daquela situação que estávamos retratando. Eu gostaria que o expectador sentisse a realidade se desenrolando à sua frente e se conectasse com a Marcielle a ponto de esquecer que estava assistindo a um filme.
Qual foi o maior desafio formal nessa empreitada?
O desafio era retratar não só uma dor física e emocional, mas também existencial, e isso foi algo que a ficção me permitiu trabalhar. Busquei estabelecer uma espécie de mergulho sensorial que conectasse o espectador à experiência emocional da protagonista. A gente não sai de perto dela nem por um minuto. Acompanhamos a história sempre pela sua perspectiva. Queria que a emoção do espectador viesse por estar sempre perto dessa menina, sentindo o que ela está sentindo, respirando junto com ela, ouvindo o que está dentro do coração dela. O cinema tem essa capacidade única de criar empatia e conexão. Eu sabia que estava lidando com uma realidade muito cruel e desumana e o meu desejo nunca foi o de chocar, nem afastar o espectador, muito pelo contrário, mas aproximá-lo, trazê-lo para perto.
Qual (e como) é a geografia física que você encontrou e como foi se adaptar a ela?
Apesar de ser do Nordeste, eu nunca havia ouvido falar sobre os casos de exploração sexual de crianças e adolescentes no Rio Tajapuru, na Ilha do Marajó. Isso me surpreendeu demais. Norte e Nordeste estão lado a lado, mas o Brasil é um país continental, de dimensões gigantescas. Muitas vezes essas realidades são silenciadas por interesses políticos. O Rio Tajapuru é um rio enorme, largo, caudaloso. Uma grande massa de água intimidadora. Todas as vezes que estive lá, senti a vulnerabilidade e o isolamento que devem marcar o dia a dia das pessoas que vivem ali. Muitas casas estão a quilômetros de distância de outra casa, ou de alguma comunidade. Uma mulher ou criança que precise de ajuda, na maior parte das vezes, não pode gritar por socorro ou atravessar o rio a nado para pedir ajuda. As rabetas (embarcação) são a única maneira de locomoção. Era importante passar essa sensação de isolamento geográfico, de vulnerabilidade emocional, num ambiente claustrofóbico trazido pela floresta e o rio que circundam as casas e a vida dos que moram lá. A vida é ditada pela maré dos rios, que enchem e secam ao longo do dia, e transbordam nas luas cheias e novas. Tentamos trazer esse importante elemento da água para o filme de maneira psicológica, para representar o movimento emocional da protagonista à medida que as violências acontecem.
Como se deu o trabalho de direção de Jamilli Correa e como foi prepará-la para cena?
Foram seis meses de teste com crianças de Belém e da região até encontrarmos a Jamilli Correa. Ela não tinha nenhuma experiência prévia com atuação e desde o primeiro momento, nos workshops que fizemos para escolha do elenco infantil, ela se destacou. Ela tinha uma presença muito forte, era muito focada e concentrada. Quem vê o filme pensa que a Jamilli é do Marajó, mas é importante dizer que ela é uma garota urbana da periferia de Belém. Não tinha costume de estar no rio, nem de andar na floresta, nunca tinha remado ou dirigido uma rabeta. Nós fizemos uma preparação longa e cuidadosa para que ela pudesse viver uma menina ribeirinha com muita verdade.