Assombrada pelo avanço recente da ultradireita, encarnada na figura de Javier Milei, seu atual presidente, a classe cinematográfica da Argentina vem ganhando apoio das maiores maratonas cinematográficas do mundo desde o Festival de San Sebastián, em setembro, que exibiu um vídeo do maior astro de nuestros hermanos, Ricardo Darín, clamando "fuerza!", a mobilizar seus conterrâneos para que tenham fé.
O circuito exibidor brasileiro parece ter escutado seu clamor. Nesta quinta-feira, um dos maiores sucessos de público e crítica da América Latina, em escopo global, com o brilhante ator no elenco, regressa às nossas telas, numa (merecida) comemoração dos 10 anos de sua estreia: "Relatos Selvagens" (2014). Indicado à Palma de Ouro de Cannes e ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, esse longa-metragem em segmentos, produzido pela El Deseo de Pedro Almodóvar, levou 3,8 milhões de argentinos às salas de projeção, faturou cerca de US$ 31 milhões mundo afora e conquistou 51 prêmios.
Chegou a ganhar holofotes até na TV aberta do Brasil, na Globo, com sessão dublada na "Tela Quente". Damián Szifrón, seu realizador, virou um talento tipo exportação, já rodando longas-metragens (como "Sede Assassina") em língua inglesa. Sua reestreia hoje ganha contornos de levante, como um ato midiático de resistência.
"Fico feliz quando as pessoas tentam encontrar uma marca identitária entre meus filmes, nos quais eu tento falar de pessoas que enfrentam demônios internos", disse o cineasta ao Correio.
A partir de contos morais sem conexão aparente, unidos apenas por um tema (a perda de controle sobre a fúria), Szifrón faz um painel sobre os descompassos que levam cidadãos de uma metrópole como Buenos Aires (e de províncias vizinhas) à atos de violência - e o faz com bom humor. Há o caso da mulher que encara a tentação de assassinar um político corrupto com veneno de rato. Há uma noiva que surta ao saber da impostura de seu amado, prestes a subir no altar. Há (a genial) batalha rodoviária entre motoristas que se estressaram no trânsito. Há ainda uma vitrine para Darín, que encarna Bombita, um pai de família enlouquecido pela burocracia estatal.
"É triste notar que todos nós da América Latina nos identificamos com a discussão da corrupção", disse Darín ao Correio da Manhã em San Sebastián, ao exibir o sucesso popular "Argentina, 1985", que ganhou o Globo de Ouro de Melhor Filme de Língua Estrangeira em 2023.
Nestes tempos de insegurança acerca do futuro de sua indústria cultural, o cinema argentino sai em busca de prêmios com "Matem o Jóckey!", ("El Jockey"), de Luis Ortega, que vai reprentar sua pátria na luta por uma vaga na disputa da estatueta dourada de Hollywood em 2025. Ganhador do prêmio Horizontes Latinos de San Sebastián, esta comédia de erros concorreu ao Leão de Ouro de Veneza. Na trama, Remo Manfredini (Nahuel Pérez Biscayart) é um jóquei lendário, cujo comportamento autodestrutivo começa a ofuscar o talento e ameaça seu namoro com Abril (Ursula Corberó). No dia da corrida mais importante de sua carreira, que o libertaria de dívidas com um mafioso, ele sofre um grave acidente, some do hospital e vagueia pelas ruas de Buenos Aires.
Este ano outro título portenho de força foi "La Estrella Que Perdi", de Luz Orlando Brennan. É um drama de mãe e filha, que tem o teatro como pano de fundo e conta com o talento de Mirta Busnelli e Ana Pauls. Na trama, uma atriz de prestígio ensaia uma peça comercial, sem grandes méritos estéticos, no empenho de se manter na crista da onda. Mas sua caçula resolve sair de casa, deixando o ninho vazio.
Outro longa argentino que se consagrou em 2024 foi "Simón de la Montaña", de Federico Luis. Sua narrativa tem corrido pelo planisfério cinéfilo endossada pela conquista do Grand Prix da Semana da Crítica, seção paralela do Festival de Cannes, na França, que celebra cineastas em início de carreira. Construído numa tênue fronteira entre ficção e realismo documental, o longa narra o processo de amadurecimento de um jovem de 21 anos (vivido por Lorenzo Ferro), que, no coração da Cordilheira dos Andes, junta-se a um grupo de adolescentes neurodivergentes abandonados à própria sorte.
"Meu longa fez parte do grupo dos três últimos filmes que foram finalizados antes da mudança de governo no meu país. É quase um marco histórico de uma etapa que acaba e de outra, mais solitária para os artistas, que começa. É curioso criar uma analogia entre a nossa realidade atual e a trama que filmei. Nela, Simón se vê diante do desafio de escolher que decisões vai tomar para seu futuro. Nós, que fazemos cinema na Argentina, estamos na mesma situação: o que fazer agora?", disse Federico ao Correio.
Para o ano que vem, uma das maiores apostas da Argentina é o .doc "Chocobar", de Lucrecia Martel. Sete anos depois do aclamado "Zama", a cultuada diretora aposta nas narrativas documentais, explorando os bastidores políticos da morte do militante indígena Javier Chocobar por latifundiários.
Darín será visto no ano que vem na série da Netflix
"El Eternauta", sob a batuta do cineasta Bruno Stagnaro, realizador do cult "Pizza, Cerveja, Cigarro" (1998). A trama é baseada na HQ do desenhista Francisco Solano López (1928-2011) e do mítico roteirista Héctor Germán Oesterheld, "sumido" no ardor repressivo da ditadura de sua nação, em 1977. O quadrinho
foi lançado de 1957 a 1959 no suplemento "Hora Cero Semanal".
Há uma outra aposta da Netflix da criatividade argentina em gestação: um série animada da heroína mirim de tiras quadrinísticas Mafalda. Seu realizador será Juan José Campanella, que ganhou o Oscar, em 2010, por "O Segredo de seus Olhos".