Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Latidos do jovem Tarantino

O jovem Tarantino, ainda estreante em longas, dá instruções a Harvey Keitel no set de 'Cães de Aluguel' | Foto: Divulgação

Desde a suspensão de seu mais recente projeto de direção ("The Movie Critic"), idealizado para ser seu último filme como realizador, Quentin Jerome Tarantino só faz correr mundo com o livro "Especulações Cinematográficas" (editado aqui pela Intrínseca), e causar polêmicas, com declarações controversas.

Há pouco, teceu loas ao indefensável "Coringa: Delírio a Dois", de Todd Phillips, irritando fãs dos quadrinhos do Batman. Antes, atacou o diretor François Truffaut (1932-1984), esculhambando seu modo de filmar. Seu jeitão "sincericida" incomoda muita gente, mas não ofusca a relevância estética de sua obra, inaugurada, em 1992, com um thriller que, nesta sexta-feira, às 23h59, ganha a vitrina nobre do Estação NET Botafogo. É noite de matar as saudades de "Cães de Aluguel" ("Reservoir Dogs", 1992). A grife QT nasceu com ele.

Cinéfilo inveterado, fã sobretudo de "Onde Começa o Inferno" (1959), de Howard Hawks (1896-1977), Tarantino trabalhava no Video Archives, uma locadora em Manhattan Beach, Califórnia, no alvorecer da década de 1990, quando planejou rodar "Cães de Aluguel" com seus amigos. Filmaria em 16mm, em P&B. O orçamento seria de US$ 30 mil, tendo o produtor Lawrence Bender não só na gerência do projeto, mas também no elenco, no papel de Mr. Pink.

Essa é a alcunha de um dos bandidos dessa narrativa sobre a preparação e as consequências de um assalto. Em seu enredo, Joe Cabot (Lawrence Tierney) e seu filho, Eddie (Chris Penn), arregimentam um grupo de criminosos profissionais para roubar um grande lote de diamantes em Los Angeles. A gangue assume codinomes baseados em cores, para encobrir suas identidades. No dia do roubo, tudo parece correr bem até que encontram a polícia à espera deles na saída, numa emboscada. Enquanto aguardam Joe e Eddie para relatar o desastre regado a sangue que se passou, os sobreviventes concluem que há um traidor no bando. A cada minuto, um desses assaltantes dá sua versão sobre o crime e, a cada vez, a suspeita de traição recai sobre um personagem diferente.

Numa das sequências mais apoteóticas, Mr. Blonde (Michael Madsen, um dos atores fetiche de Tarantino) tortura um homem, Nash, cortando sua orelha ao som de "Stuck in the Middle with You", da banda Stealers Wheel.

O que fez o longa sair do papel de forma mais ambiciosa do que a proposta de "filme de patota" esboçada por Tarantino foi uma inciativa corajosa de Bender de mostrar o roteiro para seu professor de representação. A mulher do tal docente entregou o script a um ator de muita tarimba, Harvey Keitel (de "Taxi Driver"), que gostou muito da premissa, da estrutura e dos diálogos. Gostou tanto que resolveu interpretar o ladrão Mr. White e assinar a empreitada como coprodutor, a fim de ajudar Tarantino e Bender a encontrar financiamento. Com o apoio dele, a dupla angariou US$ 1,5 milhões.

Keitel também pagou para que Tarantino e Bender organizassem testes de elenco em Nova York, onde recrutaram Steve Buscemi, Madsen e Tim Roth para as filmagens. Jon Cryer (de "Two and a Half Men") foi convidado a fazer uma audição para o papel de Mr. Pink, porém seu agente recusou o chamado sem avisá-lo. Viggo Mortensen e George Clooney participaram de leituras. O próprio Tarantino, então com 28 anos, entrou no elenco, como Mr. Brown. As filmagens se concentraram em Los Angeles, de julho a setembro de 1991. O polonês Andrzej Sekula fotografou o longa.

Sua estreia oficial ocorreu em janeiro de 1992, no Festival de Sundance (então no auge), e, com o barulhão que sua exibição fez lá em Park City, Utah, no coração da crítica, a distribuidora Miramax resolveu adquirir "Cães de Aluguel" e apostar em sua carreira comercial. Na sequência, Cannes convidou a fita para uma exibição hors-concours, que pavimentou a estrada de Tarantino na Croisette, de onde ele sairia com a Palma de Ouro, em 1994, por "Pulp Fiction - Tempo de Violência".

Nos meses seguintes à sua passagem por Cannes, em 92, "Cães de Aluguel" ganhou o Prêmio da Crítica (dado pela Federação Internacional de Imprensa Cinematográfica, a Fipresci), no TIFF, o Festival de Toronto, e conquistou as láureas de Direção e Roteiro em Sitges, na Espanha. Em circuito exibidor, seu faturamento foi de US$ 2,8 milhões.

Agora, cabe à cinefilia carioca conferir como os latitudes de Tarantino reverberam na tela do Estação.