´Márcia Faria: 'Mesmo na solidão, existe espaço parao acolhimento'

Por Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

A diretora Márcia Faria

Depois de uma acolhida carinhosa do Festival do Rio, na competição Novos Rumos, "A Procura de Martina" seguiu para a Mostra de São Paulo, encerrada em 30 de outubro, e colheu múltiplos elogios na terra da garoa. Em solo paulistano, sua realizadora, Márcia Faria - uma das mais respeitadas assistentes de direção do país, conhecida também por seu trabalho como diretora de TV e hoje também de streaming -, lançou ainda episódios da minissérie "Os Quatro da Candelária", rodada em duo com Luis Lomenha.

A estrada plural dessa cineasta ganhou os holofotes internacionais quando ela concorreu à Palma de Ouro de curtas de Cannes com "Estação", em 2010. Agora, com a saga de Martina, essa internacionalização de seu talento segue por trilhas argentinas, uma vez que ela firma parceria com uma das maiores estrelas de nuestros hermanos: Mercedes Morán.

Numa atuação estonteante, a atriz assume o papel central do longa de Márcia, vivendo uma viúva que procura há mais de 30 anos pelo neto, nascido em cativeiro durante a ditadura militar da Argentina.

A necessidade de encontrá-lo se torna ainda mais urgente depois que Martina recebe o diagnóstico de Alzheimer. Quando descobre que o neto pode estar no Brasil, ela embarca em uma jornada em que passado e presente se misturam, transformando a busca em uma luta contra o esquecimento. Uma confeiteira encarnada com esplendor por Carla Ribas complica a peleja afetiva de Martina nessa produção filmada em locações espalhadas por várias partes do Rio, como Copacabana, Madureira, Ramos, Tijuca e Jacarepaguá.

Na entrevista a seguir, Márcia fala desse processo.

Como foi o manejo com os códigos do cinema da Argentina na construção da sua mise-en-scène? O que veio explicitamente de referência deles?

Márcia Faria: Minha trajetória é profundamente marcada pelo cinema argentino, pelo cinema latino-americano como um todo, tendo "O Pântano", "A Noiva do Deserto", "Glória", "Amores Brutos" e "Mundo Grua" entre as principais influências. Esses filmes trazem um olhar direto e despojado sobre o cotidiano, sem excessos - o que sempre me fascinou. Em "A Procura de Martina", busquei compor os quadros e os movimentos de câmera para intensificar a conexão entre os personagens e os ambientes que eles habitam. Além disso, trabalhamos com uma abordagem sonora e sensorial da imagem que contribui para criar uma atmosfera densa, onde muito é comunicado sem a necessidade de palavras. Nesse sentido, há uma inspiração clara no cinema sensível de diretores como Lucrecia Martel, que conseguem criar atmosferas carregadas de significado, onde som e imagem dialogam de forma sutil, transmitindo emoções mesmo na ausência de diálogo.

Depois da sua vasta experiência de set com atrizes e atores do Brasil, o que a Mercedes Morán aportou de mais singular ao seu repertório de direção de elencos?

Mercedes expressa com maestria tanto a vulnerabilidade quanto a força silenciosa de Martina, criando uma jornada emocional rica e essencialmente humana. Ela entrega uma interpretação cheia de sutilezas, onde o não dito revela camadas complexas de sua personagem, dividida entre seu passado e o presente. Sua habilidade de transmitir emoções com gestos contidos e econômicos permite ao espectador experimentar as dúvidas, medos e aspirações de Martina de maneira profundamente íntima. Além disso, ela transita com naturalidade entre o humor e o drama, trazendo momentos de leveza que oferecem respiros ao longo da trama. Esses instantes cômicos, desarmam o público, facilitando uma conexão mais profunda e empática com a história.

Qual é o lugar da solidão na representação do feminino que seu cinema propõe, arrisco que desde o curta "Estação", exibido em Cannes em 2010?

Ao refletir sobre os pontos de contato entre meu curta e meu longa, percebo que tanto "Estação" quanto "A Procura de Martina" exploram a temática do deslocamento. Ambas as protagonistas abandonam seus lugares de conforto em busca de autoconhecimento e transformação. No curta-metragem "Estação", a solidão é retratada pela vivência de uma mulher que reside no terminal Tietê, em São Paulo, a maior estação de ônibus da América Latina. Este cenário simboliza a espera e a incerteza que permeiam sua vida, intensificando a sensação de isolamento. Por outro lado, em "A Procura de Martina", a protagonista deixa para trás o conforto de Buenos Aires, sua cidade natal, para se lançar em uma aventura em um país estrangeiro, imersa em uma nova língua e cultura. Enquanto "Estação" é um estudo íntimo e isolado sobre a solidão feminina, "A Procura de Martina" amplia essa temática ao mostrar que, mesmo na solidão, existe espaço para o acolhimento e a construção de laços significativos. Ambos os filmes nos levam a refletir: a solidão, embora frequentemente dolorosa, pode também ser um ponto de partida para o autoconhecimento e a busca por pertencimento.