O inestimável 'Tesouro' da conciliação

Depois de dividir opiniões na Europa, em sua passagem pela Berlinale, dramédia familiar com Stephen Fry e Lena Dunham chega ao Brasil celebrando a resiliência judaica

Por Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Ruth (Lena Dunham) exorciza suas mágoas no abraço do pai, Edek (Stephen Fry) em 'Tesouro'

 

Nos tempos em que o VHS era a maior diversão, locadoras brasileiras alugavam a rodo "Para o Resto De Nossas Vidas" ("Peter's Friends", 1992), o que fez do ator Stephen Fry uma figurinha pop por aqui, sobretudo na comunidade queer. Sua fleuma amortizada por um ar de bonachão garantiu-lhe uma legião de fãs. Sua atuação em "Wilde - O Primeiro Homem Moderno" (1997), que bombou no Estação Botafogo, ampliou sua visibilidade no Brasil.

Sua fama por cá cresceu mais ainda quando ele se tornou tema (e nome) de música. "Onde andará Stephen Fry?" era a pergunta feita pelo cantor e compositor Zeca Baleiro no refrão de um hit de seu primeiro disco, lá de 1997. O músico citava uma notícia de anos anteriores acerca do suposto chá de sumiço tomado pelo ator e ativista (da causa LGBTQIAPN ) após uma crítica negativa a uma peça de teatro.

A resposta à indagação do Baleiro pode ser encontrada hoje no circuito carioca: Fry está em cartaz no país com "Tesouro" ("Treasure"). Foi o filme mais fofo entre os títulos projetados pela Berlinale 2024. O Festival de Berlim não costuma ser um bom garimpo para tramas bem-humoradas, em função de sua alta voltagem política. Apesar disso, por suas referências históricas ao Holocausto, a comédia dramática feel good com Lena Dunham e Fry brilhou em sua passagem por terras germânicas e deixou a Alemanha salpicada de elogios.

Aliás, por lá, Fry foi elogiado a plenos pulmões por seu enfrentamento a Jair Bolsonaro durante uma entrevista com o ex-presidente (antes de sua eleição ao Planalto) para um projeto documental sobre homofobia. Encarou o político sem medo, ironizando-o.

"O caminho para entender o mundo que temos diante de nós é buscar um olhar acolhedor sobre as relações familiares", disse o ator inglês ao Correio da Manhã, em Berlim.

Estrela e roteirista da série "Girls", fenômeno pop da década passada, Lena ilumina a telona ao lado de Fry, que tem uma atuação encantadora. Eles vivem filha e pai num road movie que se passa em 1991, data na qual a jornalista Ruth (Lena) leva seu pai, o imigrante judeu polonês Edek (Fry, sublime em cena), a um passeio por sua terra natal. O problema é que ela vai incluir campos de concentração no pacote, o que leva Edek, a lembrar da dor vivida por seu povo na mão dos nazistas. O tema é bem áspero. O longa, dirigido por Julia von Heinz, não.

"É um relato importante nestes tempos de avanço da ultradireita", disse Lena.

Na crítica internacional, há quem encare "Tesouro" como um gesto sionista (sobretudo diante do recrudescimento do conflito na Palestina) e há quem o defina como um gesso de doçura. Da Berlinale para cá, há uma divisão de opiniões que amplia popularidade e visibilidade de Heinz. Seu filme, por onde passa, vira alvo de uma discussão sobre o espaço dado pelo cinema ao trauma dos expurgos judaicos. Seu enredo aponta o risco do esquecimento do mal perpetrado pelas forças de Hitler contra o povo judeu. A trama tem sua gênese no livro "Too Many Men", de Lily Brett, uma saga de tônus autobiográfico sobre judeus que revisitam a bestialidade das hordas nazistas - e, no caminho, reinventam-se.

No longa, Edek está viúvo e decide viajar para a Polônia para atender um pedido de Ruth, que anda empenhada num livro sobre os expurgos hitleristas. Essa jornada da dupla terá pontos de dor, de revisão de antigas mágoas, porém, terá picos de humor e de cumplicidade.

"Edek carrega um traço heroico na medida em que tenta proteger sua cria e mostrar para ela que ser judeu não é um fardo", disse Fry, visto na Netflix na série "Heartstopper". "É importante haver narrativas sobre solidariedade".

Em 2025, ele será visto no thriller "Summer Night, Winter Moon" e no terror "Black Samphire".